terça-feira, 17 de dezembro de 2013
Tormenta in Mensagem
"a noite é o fausto do mistério"- a noite é a pompa do desconhecido; é de noite que o desconhecido assume toda a sua grandeza (ou é mais terrível)..
"o relâmpago, farol de Deus, um hausto brilha"- o relâmpago reluz por um instante (literalmente: pelo tempo de uma inalação rápida). "e o mar escuro estruge"- o mar estrondeia (faz um estrépito muito alto).
Apesar da ilustração que escolhi, o poema é sobre uma tormenta simbólica: a agitação íntima de Portugal que, segundo Pessoa, aspira ser a nação do Quinto Império. E no negrume da ignorância do Seu desígnio, Deus indica-o por um breve instante (supostamente através do próprio F. Pessoa que seria, assim, o "farol de Deus").
Francisco Montez
Calma in Mensagem
Este estranho poema deve ser comparado ao intitulado "Ilhas Afortunadas" que versa o mesmo tema e foi escrito alguns dias mais tarde. É provável que o poema agora intitulado "Calma" tenha sido a primeira versão de "Ilhas Afortunadas" e tenha sido repescado para a última parte de Mensagem que foi preparada com um prazo muito curto e, destinando-se a um concurso que impunha um número mínimo de páginas, obrigava o poeta a incluir mais material do que o que, de outra maneira, poderia ter incluido.
Este poema representa uma espécie de tempo de paragem para reflexão, o que talvez tenha justificado o seu nome.
"rasgões no espaço que deem para outro lado"- este conceito dos mundos paralelos ou túneis para outros mundos, hoje lugar comum nos contos de ficção científica e parcialmente alvo de estudos pelos físicos teóricos, é altamente surpreendente para a época e suscita a questão de se Pessoa o terá imaginado ou se terá tido notícia dele através de revistas de ficção científica americanas.
Francisco Montez
Noite in Mensagem
O poema Noite expressa o desejo de mudança e à acção dos portugueses na construção de um Império futuro, o Quinto Império, mas não um império material, mas sim naquilo que é espiritual e imaterial. A vontade de reabilitar a pátria leva o sujeito poético a relembrar os heróis que permanecem na memória colectiva e que são exemplos do que permitirá reestabelecer a pátria. Neste caso são referidos os irmãos Corte-Real, que intervieram na exploração do Canadá, que são alusivos a um grupo de pessoas que sonhou e superou as dificuldades, adquirindo assim um valor simbólico e espiritual após a sua morte através da sua imortalização devido à sua descoberta.
Além da estrutura trinitária da Mensagem, que representa os momentos do herói e o percurso da obra heróica, também este poema d’ “Os Tempos” se associa ao número três visto que se encontra dividido em três momentos e se refere a três irmãos, o que confere ao mesmo número um valor simbólico: representa, assim, a perfeição e a totalidade.
O primeiro momento corresponde às duas primeiras estrofes e diz respeito ao passado enquanto tempo da descoberta e da superação refirindo-se, então, aos heróis dos Descobrimentos (“na fé e na lei/ Da descoberta, ir em procura”). O mar tem uma configuração simbólica na medida em que é o local onde os portugueses superaram os limites representando a conquista humana em relação ao conhecimento. Já a terceira e quarta estrofes representam, após a morte concreta dos heróis, o presente, isto é, a decadência do Império (“Cumpriu-se o Mar e o Império se desfez” – in “O Infante”) e a vontade de reabilitação da morte dos dois irmãos, da pátria, concretizada pelo terceiro irmão (“olhos rasos de ânsia/ Fitando a proibida azul distância”). O “Poder” e o “Renome” são a alusão simbólica a dois referentes históricos, os irmãos Corte-Real, que estão aqui desmaterializados para vencer o tempo (natureza do mito). A estrofe final é um apelo a Deus, enquanto entidade abstracta, pelo ressurgimento do Império (“A Deus as mãos alçamos”).
O sujeito poético termina com “Mas Deus não dá licença que partamos, determinando, assim, a necessidade de criação de um Império Espiritual e revelando o desejo de um renascimento: está na altura de Portugal se reabilitar enquanto nação, o que se compagina com o louvor a “Deus” (“A Deus as mãos alçamos”).
Hugo João
António Vieira in Mensagem
O Poema “António Vieira” faz parte da Terceira parte da mensagem e do 2º “capitulo”/secção desta terceira parte, Neste poema, Fernando Pessoa qualifica António Vieira como o maior orador do seu tempo, e como utilizador notável da língua portuguesa como se pode ver no verso “ imperador da língua portuguesa”. Quando Pessoa diz “surge, prenúncio claro do luar, El-rei D.Sebastião” refere-se aos escritos do Padre António Vieira referente às esperanças de Portugal que um grande rei conduziria a um futuro Quinto Império Mundo. Baseia-se também na lenda que anunciava o regresso do rei D.Sebastião. Pessoa tem um momento em que afirma “foi-nos um céu também”, ou seja, designa António Vieira como um céu estrelado dos portugueses, grandioso, trazendo assim, grandiosidade à Língua Portuguesa. No verso “Mas não, não é luar: é luz do etéreo”, o poeta diz que não é o luar, ou seja, o final do dia, pois a luz do etéreo é a luz celesta, a luz do início de um novo dia, sendo isto como que uma metáfora para o início de um novo império, o Quinto Império.
Hugo João
quinta-feira, 5 de dezembro de 2013
O Provincianismo Português
O amor ao progresso e ao moderno é a outra forma
do mesmo característico provinciano. Os civilizados criam o progresso, criam a
moda, criam a modernidade; por isso lhes não atribuem importância de maior.
Ninguém atribui importância ao que produz. Quem não produz é que admira a
produção. Diga-se incidentalmente: é esta uma das explicações do socialismo. Se
alguma tendência têm os criadores de civilização, é a de não repararem bem na
importância do que criam. O Infante D. Henrique, com ser o mais sistemático de
todos os criadores de civilização, não viu contudo que prodígio estava criando –
toda a civilização transoceânica moderna, embora com consequências abomináveis,
como a existência dos Estados Unidos. Dante adorava Vergílio como um exemplar e
uma estrela, nunca sonharia em comparar-se com ele; nada há, todavia, mais
certo que o ser a “Divina Comédia” superior à “Eneida”. O provinciano, porém,
pasma do que não fez, precisamente porque o não fez; e orgulha-se de sentir
esse pasmo. Se assim não sentisse, não seria provinciano.
É na incapacidade de ironia que reside io traço
mais fundo do provincianismo mensta. Por ironia entende-se, não o dizer piadas,
como se crê nos cafés e nas redacções, mas o dizer uma coisa para dizer o
contrário. A essência da ironia consiste em não se poder descobrir o segundo
sentido do texto por nenhuma palavra dele, deduzindo-se porém esse segundo
sentido do facto de ser imporssível dever o texto dizer aquilo que diz. Assim,
o maior de todos os ironistas, Swift, redigiu, durante uma das fomes na
Irlanda, e como sátira brutal à Inglaterra, um breve escrito propondo uma solução
para essa fome. Propõe que os irlandeses comam os próprios filhos. Examina com
grande seriedade o problema, e expõe com clareza e ciência a utilidade das
crianças de menos de sete anos como bom alimento. Nenhuma palavra nessas
páginas assombrosas quebra a absoluta gravidade da exposição; ninguém poderia
concluir, do texto, que a proposta não fosse feita com absoluta seriedade, se
não fosse a circunstância, exterior ao texto, de que uma proposta dessas não
poderia ser feita a sério.
A ironia é isto. Para a sua realização exige-se um
domínio absoluto da expressão, produto de uma cultura intensa; e aquilo a que
os ingleses chamam detachment – o poder de afastar-se de si mesmo, de
dividir-se em dois, produto daquele “desenvolvimento da largueza de consciência”
em que, segundo o historiador alemão Lamprecht, reside a essência da
civilização. Para a sua realização exige-se, em outras palavras, o não se ser
provinciano.
O exemplo mais flagrante do provincianismo
português é Eça de Queirós. É o exemplo mais flagrante porque foi o escritor
português que mais se preocupou (como todos os provincianos) em ser civilizado.
As suas tentativas de ironia aterram não só pelo grau de falência, senão também
pela inconsciência dela. Neste capítulo, “A Relíquia”, Paio Pires a falara
francês, é um documento doloroso. As próprias páginas sobre Pacheco, quase
civilizadas, são estragadas por vários lapsos verbais, quebradores da
imperturbabilidade que a ironia exige, e arruinadas por inteiro na introdução
do desgraçado episódio da viúva de Pacheco.
Compare-se Eça de Queirós, não direi já com Swift,
mas, por exemplo, com Anatole France. Ver-se-á a diferença entre um jornalista,
embora brilhante, de província, e um verdadeiro, se bem que limitado, artista.
Para o provincianismo há só uma terapêutica: é o saber que ele existe. O
provincianismo vive da inconsciência; de nos supormos civilizados quando o não
somos, de nos supormos civilizados precisamente pelas qualidades por que o não
somos. O princípio da cura está na consciência da doença, o da verdade no
conhecimento do erro. Quando um doido sabe que está doido, já não está doido.
Estamos perto de acordar, disse Novalis, quando sonhamos que sonhamos.
Fernando Pessoa, in 'Portugal entre Passado e Futuro'
REFLEXÕES SOBRE O PROVINCIANISMO (Reflections on Provincialism)
Não
é de admirar, de facto, que a grande maioria da humanidade civilizada seja
mentalmente provinciana, porque o urbanismo mental é mais difícil de se
estabelecer que o geográfico (geodético). O que porém será de admirar é se
formos encontrar os sintomas de provincianismo entre a minoria, entre o escol e
o escol do escol.
Se,
assim, em grande número de nações há um provincianismo geral do escol, sucede
que, naquelas em que tal se não dá assim, continua a dar-se, de outro modo.
Aqui é o escol inteiro, em suas três camadas, ou duas, que manifesta o
provincianismo. Ali é a maioria do escol, por ter perdido a capacidade de
absorver as ideias emanadas do escol menor.
Nos
tempos da Renascença, como, precedentemente, nos da Idade Média, uma doutrina
superior não tardava em ser conhecida, e, onde não fosse adoptada, pelo menos
rejeitada criticamente. Agora, uma doutrina superior dificilmente passa para as
camadas cultas, e, quando ali chega, chega como o equusdo epigrama
francês — mudou bastante no caminho.
Repare-se no que, em todos os povos do mundo, se passa
em matéria de doutrina política. A política prática continua a correr nas
mesmas calhas, ou em calhas quase as mesmas. No entanto fervilham doutrinas
críticas da política, com que ninguém na prática se importa. Tudo quanto se tem
feito recentemente de alterações nas constituições ou leis fundamentais, são
expedientes da política acidental, movimentos do oportunismo — nunca a
aplicação de princípios críticos, de doutrinas sociológicas.
s.d.
Ultimatum e Páginas de Sociologia
Política. Fernando Pessoa. (Recolha de
textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de
Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.
- 6.
NOTAS PARA A RECORDAÇÃO DO MEU MESTRE CAEIRO (algumas delas)
Conheci o meu
mestre Caeiro em circunstâncias excepcionais — como todas as circunstâncias da
vida, e sobretudo as que, não sendo nada em si mesmas, hão-de vir a ser tudo
nos resultados.
Deixei em quase
três quartos o meu curso escocês de engenharia naval; parti numa viagem ao
Oriente; no regresso, desembarcando em Marselha, e sentindo um grande tédio de
seguir, vim por terra até Lisboa. Um primo meu levou-me um dia de passeio ao
Ribatejo; conhecia um primo de Caeiro, e tinha com ele negócios; encontrei-me com
o que havia de ser meu mestre em casa desse primo. Não há mais que contar,
porque isto é pequeno, como toda a fecundação.
Vejo ainda, com
claridade da alma, que as lágrimas da lembrança não empanam, porque a visão não
é externa... Vejo-o diante de mim, vê-lo-ei talvez eternamente como primeiro o
vi. Primeiro, os olhos azuis de criança que não têm medo; depois, os malares já
um pouco salientes, a cor um pouco pálida, e o estranho ar grego, que vinha de
dentro e era uma calma, e não de fora, porque não era expressão nem feições. O
cabelo, quase abundante, era louro, mas, se faltava luz, acastanhava-se. A
estatura era média, tendendo para mais alta, mas curvada, sem ombros altos. O
gesto era branco, o sorriso era como era, a voz era igual, lançada num tom de
quem não procura senão dizer o que está dizendo-nem alta, nem baixa, clara,
livre de intenções, de hesitações, de timidezas. O olhar azul não sabia deixar
de fitar. Se a nossa observação estranhava qualquer coisa, encontrava-a: a
testa, sem ser alta, era poderosamente branca. Repito: era pela sua brancura,
que parecia maior que a da cara pálida, que tinha majestade. As mãos um pouco
delgadas, mas não muito; a palma era larga. A expressão da boca, a última coisa
em que se reparava — como se falar fosse, para este homem, menos que existir —
era a de um sorriso como o que se atribui em verso às coisas inanimadas belas,
só porque nos agradam — flores, campos largos, águas com sol — um sorriso de
existir, e não de nos falar.
Meu mestre, meu
mestre, perdido tão cedo! Revejo-o na sombra que sou em mim, na memória que
conservo do que sou de morto...
Foi durante a
nossa primeira conversa. Como foi não sei, e ele disse: «Está aqui um rapaz
Ricardo Reis que há-de gostar de conhecer: ele é muito diferente de si». E depois
acrescentou, «tudo é diferente de nós, e por isso é que tudo existe».
Esta frase,
dita como se fosse um axioma da terra, seduziu-me com um abalo, como o de todas
as primeiras posses, que me entrou nos alicerces da alma. Mas, ao contrário da
sedução material, o efeito em mim foi de receber de repente, em todas as minhas
sensações, uma virgindade que não tinha tido.
*
Referindo-me,
uma vez, ao conceito directo das coisas, que caracteriza a sensibilidade de
Caeiro, citei-lhe, com perversidade amiga, que Wordsworth designa um insensível
pela expressão:
A primrose by the river's brim
A yellow primrose was to him
And it was nothing more.
E traduzi
(omitindo a tradução exacta de «primrose», pois não sei nomes de flores nem de
plantas): «Uma flor à margem do rio para ele era uma flor amarela, e não era
mais nada».
O meu mestre
Caeiro riu. «Esse simples via bem: uma flor amarela não é realmente senão uma
flor amarela».
Mas, de
repente, pensou.
«Há uma
diferença», acrescentou. «Depende se se considera a flor amarela como uma das
várias flores amarelas, ou como aquela flor amarela só».
E depois disse:
«O que esse seu
poeta inglês queria dizer é que para o tal homem essa flor amarela era uma
experiência vulgar, ou coisa conhecida. Ora isso é que não está bem. Toda a coisa
que vemos, devemos vê-la sempre pela primeira vez, porque realmente é a
primeira vez que a vemos. E então cada flor amarela é uma nova flor amarela,
ainda que seja o que se chama a mesma de ontem. A gente não é já o mesmo nem a
flor a mesma. O próprio amarelo não pode ser já o mesmo. É pena a gente não ter
exactamente os olhos para saber isso, porque então éramos todos felizes».
*
O meu mestre
Caeiro não era um pagão: era o paganismo. O Ricardo Reis é um pagão, o António
Mora é um pagão, eu sou um pagão; o próprio Fernando Pessoa seria um pagão, se
não fosse um novelo embrulhado para o lado de dentro. Mas o Ricardo Reis é um
pagão por carácter, o António Mora é um pagão por inteligência, eu sou um pagão
por revolta, isto é, por temperamento. Em Caeiro não havia explicação para o
paganismo; havia consubstanciação.
Vou definir
isto da maneira em que se definem as coisas indefiníveis — pela cobardia do
exemplo. Uma das coisas que mais nitidamente nos sacodem na comparação de nós
com os gregos é a ausência de conceito de infinito, a repugnância de infinito,
entre os gregos. Ora o meu mestre Caeiro tinha lá mesmo esse mesmo conceito.
Vou contar, creio que com grande exactidão, a conversa assombrosa em que mo
revelou.
Referia-me ele,
aliás desenvolvendo o que diz num dos poemas de «O Guardador de Rebanhos»,
que não sei quem lhe tinha chamado em tempos «poeta materialista». Sem achar a
frase justa, porque o meu mestre Caeiro não é definível com qualquer frase
justa, disse, contudo, que não era absurda de todo a atribuição. E
expliquei-lhe, mais ou menos bem, o que é o materialismo clássico. Caeiro
ouviu-me com uma atenção de cara dolorosa, e depois disse-me bruscamente:
«Mas isso o que
é é muito estúpido. Isso é uma coisa de padres sem religião, e portanto sem desculpa
nenhuma».
Fiquei atónito,
e apontei-lhe várias semelhanças entre o materialismo e a doutrina dele, salva
a poesia desta última. Caeiro protestou.
«Mas isso a que
V. chama poesia é que é tudo. Nem é poesia: é ver. Essa gente materialista é
cega. V. diz que eles dizem que o espaço é infinito. Onde é que eles viram isso
no espaço?»
E eu,
desnorteado. «Mas V. não concebe o espaço como infinito? Você não pode conceber
o espaço como infinito?»
«Não concebo
nada como infinito. Como é que eu hei-de conceber qualquer coisa como
infinito?»
«Homem», disse
eu, «suponha um espaço. Para além desse espaço há mais espaço, para além desse
mais, e depois mais, e mais, e mais... Não acaba...»
«Porquê?» disse
o meu mestre Caeiro.
Fiquei num
terramoto mental. «Suponha que acaba», gritei. «O que há depois?»
«Se acaba,
depois não há nada», respondeu.
Este género de
argumentação, cumulativamente infantil e feminina, e portanto irresponsável,
atou-me o cérebro durante uns momentos.
«Mas V. concebe
isso?» deixei cair por fim.
«Se concebo o
quê? Uma coisa ter limites? Pudera! O que não tem limites não existe. Existir é
haver outra coisa qualquer e portanto cada coisa ser limitada. O que é que
custa conceber que uma coisa é uma coisa, e não está sempre a ser uma outra
coisa que está mais adiante?»
Nessa altura
senti carnalmente que estava discutindo, não com outro homem, mas com outro
universo. Fiz uma última tentativa, um desvio que me obriguei a sentir
legítimo.
«Olhe,
Caeiro... Considere os números... Onde é que acabam os números? Tomemos
qualquer número — 34, por exemplo. Para além dele temos 35, 36, 37, 38, e assim
sem poder parar. Não há número grande que não haja um número maior. . .»
«Mas isso são
só números», protestou o meu mestre Caeiro.
E depois
acrescentou, olhando-me com uma formidável infância:
«O que é o 34
na realidade?»
*
Há frases
repentinas, profundas porque vêm do profundo, que definem um homem, ou, antes,
com que um homem se define, sem definição. Não me esquece aquela em que Ricardo
Reis uma vez se me definiu. Falava-se de mentir, e ele disse: «Abomino a
mentira, porque é uma inexactidão». Todo o Ricardo Reis — passado, presente e
futuro — está nisto.
O meu mestre Caeiro,
como não dizia senão o que era, pode ser definido por qualquer frase sua,
escrita ou falada, sobretudo depois do período que começa do meio em diante de
«O Guardador de Rebanhos». Mas, entre tantas frases que escreveu e se
imprimem, entre tantas que me disse o relato ou não relato, a que o contém com
maior simplicidade é aquela que uma vez me disse em Lisboa. Falava-se de não
sei quê que tinha que ver com as relações de cada qual consigo mesmo. E eu
perguntei de repente ao meu mestre Caeiro, «está contente consigo?» E ele
respondeu: «Não: estou contente». Era como a voz da Terra, que é tudo e
ninguém.
*
Nunca vi triste
o meu mestre Caeiro. Não sei se estava triste quando morreu, ou nos dias antes.
Seria possível sabê-lo, mas a verdade é que nunca ousei perguntar aos que
assistiram à morte qualquer coisa da morte ou de como ele a teve.
Em todo o caso,
foi uma das angústias da minha vida — das angústias reais em meio de tantas que
têm sido fictícias — que Caeiro morresse sem eu estar ao pé dele. Isto é
estúpido mas humano, e é assim.
Eu estava em
Inglaterra. O próprio Ricardo Reis não estava em Lisboa; estava de volta no
Brasil. Estava o Fernando Pessoa, mas é como se não estivesse. O Fernando
Pessoa sente as coisas mas não se mexe, nem mesmo por dentro.
Nada me consola de não ter estado em Lisboa nesse dia, a não ser aquela
consolação que pensar no meu mestre Caeiro espontaneamente me dá. Ninguém é
inconsolável ao pé da memória de Caeiro, ou dos seus versos; e a própria ideia
do nada — a mais pavorosa de todas se se pensa com a sensibilidade — tem, na
obra e na recordação do meu mestre querido, qualquer coisa de luminoso e de
alto, como o sol sobre as neves dos píncaros inatingíveis.
1931
Textos de Crítica e de Intervenção . Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1980.
- 267.
sexta-feira, 29 de novembro de 2013
Interpretação de Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett
Tem de ficar reservado à
investigação posterior verificar se, dentro da tragédia, ou do drama de
desenlace, haverá tipos de estrutura mais nitidamente marcados. Nós
limitamo-nos a apresentar um exemplo prático para a compreensão da estrutura
interior da tragédia. Assim se mostrará a maneira de trabalhar deste método,
que tem em vista as últimas profundidades de uma obra. Simultaneamente
tornar-se-á nítido o que se ganha assim para o esclarecimento de toda a obra.
Escolhemos como exemplo, a obra que, segundo os críticos contemporâneos, é a
obra-prima do teatro português, em si tão escasso: o Frei Luís de Sousa de
Almeida Garrett. Na Alemanha a obra foi traduzida por W. v. Lukner (1847),
Georg Winkler (1899) e outros, e foi também representada ocasionalmente. Por
pouco não encontrou o caminho do teatro de ópera: F. Mendelssohn-Bartholdy
pediu ao Conde Schack um libreto de ópera que se chamaria Manuel de Sousa.
O assunto em si é histórico:
Manuel de Sousa (1555-1632) tinha desposado a viúva de um nobre caído na
funesta batalha de Alcácer Quibir; o regresso do que havia sido dado por morto
destruiu a família e fez entrar os esposos em conventos. Sob o nome de Frei
Luís de Sousa chegou Manuel mais tarde a ser um escritor célebre. (Ademais
Manuel fora na sua juventude cativo de mouros que o levaram para Argel; ali se
encontrara com Cervantes que em Persiles y Sigismunda faz contar ao seu
companheiro de desgraça uma romanesca história da sua vida.)
Se a categoria do drama é quase
irrefutada, a sua interpretação tem dado lugar a muitas discussões. Farinelli
interpretou a tragédia como tragédia de carácter (citado por Joaquim de Araújo,
o Frei Luís de Sousa, pág.65). António Arroyo (A figura dramática de Maria de
Noronha, Sep. de A Águia, 1922) focava Maria como verdadeiro centro; ela seria,
por um lado, símbolo da idade de ouro moribunda; por outro, seria uma
duplicação de Manuel de Sousa e, como tal, encarnação do seu espírito poético.
Outros consideravam o Cristianismo a ideia verdadeiramente construtiva da obra;
da retirada das pessoas principais para o claustro faziam um apelo ao leitor
para que pensasse na salvação da sua alma. A. J. da Costa Pimpão (Biblos, XVI) colocou
de novo Maria no centro e interpretou também a génese do drama partindo da
ansiedade do poeta pela sua própria filha ilegítima, o que, aliás, já tinham
suspeitado Th. Braga e Le Gentil. Andrée Crabbé Rocha (O Teatro de Garrett,
1944), que conseguiu projetar plena luz sobre a génese e o problema das fontes,
nomeou «quatro pontos cardeais» que, simultaneamente, seriam traços essenciais
do português (pág.166): «o erotismo atenuado pelo medo do inferno, as forças
transcendentes, fatais e conjugadas da igreja, a honra e o brio do português
velho, e o idealismo sentimental de Maria.» A estas «dominantes» teria Garrett
dado «corpo e seiva». Aqui, a autora força a um salto, pois não explica como
aconteceu este «dar corpo e seiva». Não seria talvez também tão simples provar
como se pode construir uma obra com estes quatro impulsos ideais.
Antecipando: Se olharmos da obra
para a sua génese, não acreditamos nos quatro impulsos ideais, nem, aliás, em
qualquer dos outros enunciados, tais como idade de ouro, cristianismo, filha
ilegítima. E, olhando da obra para diante, não cremos que a sua importância e
influência residam nas quatro dominantes (embora, sem contestação, elas
pertençam ao fundo ideológico da obra). A nossa primeira resposta é, para ambos
os lados: a obra foi criada – e atua – como tragédia.
O alto apreço em que é tida,
precisamente no estrangeiro, apreço que se reflete nos esforços de vários
investigadores estrangeiros em torno deste drama, não se deve, com certeza, ao
seu carácter informativo, i. é, documental da maneira de ser portuguesa, mas
sim à sua categoria artística. E isto quer dizer: ao seu carácter de tragédia.
Que o incentivo decisivo foi a intenção de escrever uma autêntica tragédia,
isto poderia provar-se suficientemente com as palavras do autor, em que neste
caso acreditamos plenamente.
Delas depreendemos ainda mais:
que ele queria escrever uma tragédia com a simplicidade e concentração antigas.
Na sua «fonte» descobriu ele um argumento que continha «toda a simplicidade de
uma fábula trágica antiga».
Ao procurar entender a estrutura
especial de tragédia desta obra (toda a parte filológica foi definitivamente
esclarecida por Andrée Crabbé Rocha), partimos da fábula. Pode reproduzir-se
aproximadamente assim: Uma mulher, a quem foi anunciada a morte do marido,
longe da pátria, casa com um outro, que, já antes, lhe não era indiferente.
Deste casamento nasce uma filha. Anos volvidos, regressa o primeiro marido tido
por morto. O seu regresso destrói toda a família.
Fábula na verdade simples, na qual,
aliás, nos impressiona imediatamente que as pessoas não podem desenvolver uma
atividade palpável: não é, por certo, uma fábula trágica no sentido da estética
idealista. Aproximemo-nos dela sem tais preconceitos, e então temos a esperar
da essência do trágico que a situação da família nos seja exposta, no momento
do regresso, como absolutamente irremediável. O mundo de Garrett é com efeito
de tal feição que o regresso do primeiro marido causa a desonra da mulher e da
filha e lhes tira assim toda a base da existência. (Outras elaborações do
motivo do marido que regressa mostram que o mundo poético pode também ser
organizado diversamente. Não faltam comédias sobre este motivo. Em Garrett é
sobretudo a religiosidade que contribui para o rigor do seu mundo e que, já por
isso, resulta ser um meio e não um fim.) Além disso, compreende-se logo que
Garrett não marcou para o seu drama a mesma sequência de tempo que está
incluída na fábula, mas procedeu, antes, a uma forte concentração. Escolheu a
forma do drama analítico, em que os acontecimentos no palco nos apresentam
apenas a última parte de um extenso acontecer, comprimida num breve espaço de
tempo.
Porém o tempo, neste drama, tem
ainda peculiaridades especiais. Como subdivisões não há nele só horas, dias e
anos, mas datas e espaços de tempo estranhamente carregados. Tais datas
suscitam um acontecimento fatal, indicam uma potência escura e a sua atuação
quase rítmica. Sete anos se passam entre a morte do primeiro e o casamento com
o segundo marido (as «fontes» falam de 17 a 18 anos), duas vezes sete anos
decorreram desde então. A sexta-feira é um dia especial para Madalena (II, 5);
em II, 10 ouvimos que o seu casamento, a fatídica batalha e o conhecimento com
Manuel caem no mesmo dia do ano; é neste dia também que o primeiro marido
regressa. Também para o Romeiro o dia do regresso é, assim, uma data especial
(II, 14), etc. As figuras evidenciam um
vivo sentimento desta fatalidade de datas e espaços de tempo, sentem medo da «hora
fatal» (III, 7), do «dia fatal» (II, 10 e mais vezes). Esta estruturação do
tempo é obra de Garrett, e, precisamente porque o é, parece lícito admitir já
aqui que ele é de força expressiva quanto à essência do drama, à sua estrutura
de tragédia.
Concentração é a primeira
característica da estruturação do tempo; caracteriza também a estruturação do
espaço. O primeiro ato passa-se no palácio de Manuel, o segundo e o terceiro no
de D. João de Portugal. A mutação de lugar é forçosamente motivada, mais ainda:
o primeiro cenário desaparece, deixa de existir – Manuel deita fogo ao seu
palácio (traço histórico); o cenário do segundo e terceiro atos representa um
mundo absolutamente fechado em si próprio. Porém, como o tempo, também o espaço
é de género especial. Não que ele tome o papel principal: não devemos ver nele,
por exemplo, o que era um solar à volta de 1600 e como lá se vivia. O local da
ação é formado por categorias semelhantes às do tempo, quer dizer, a partir do
acontecimento. O palácio pertence ao marido que regressa, insufla vida ao passado.
Neste mundo dramático, as recordações transformam-se logo em pressentimentos. O
espaço anuncia a desgraça que se aproxima, tem uma ação opressiva, fatal,
ominosa. Pois um «omen» é a anunciação sensível de uma fatalidade iminente. Há
no espaço dois sinais especialmente pressagos e ominosos. Quando arde o retrato
de D. Manuel, isto aparece-nos, no mundo do drama, como indício certo de
desgraça e assim é sentido pelas figuras. Atua também como «omen» o segundo
retrato, o de D. João de Portugal. Madalena e também Maria param diante dele
como que fascinadas. No fim do segundo ato torna-se meio de reconhecimento.
O espaço é formado pelo
acontecimento. Não temos diante de nós um drama de espaço, nem tão-pouco um
drama de personagem. Nas personagens mostra-se imediatamente a mesma
concentração: são em número reduzido. Estão relacionadas umas com as outras de
modo surpreendente e formam um todo fechado, ou seja uma família. Compõe-se de
pai, mãe, filha, e criado que é parte integrante da família. A única figura «técnica»
de importância é ainda irmão de Manuel. Pode-se quase dizer: a família é uma
personagem, é a personagem do drama.
Se, partindo de uma determinada
conceção do trágico, se exige que uma figura trágica tenha de ser sempre uma
figura ativa, que se empenhe na defesa de uma ideia, neste exemplo se revela a
estreiteza de tal conceção. Pois o nosso ponto de partida, a que nos
conservamos fiéis, é a de que o Frei Luís de Sousa é uma autêntica tragédia.
Nenhum membro desta família (e esta, como todo, naturalmente também não) é um
herói ativo, nenhum pretende defender ideias (a aparente exceção, o «desafio»
lançado por Manuel aos governadores ao deitar fogo ao palácio, será ainda
debatido por nós). Podemos, decerto, dizer que esta família se que conservar como
família, que estes seres humanos se pertencem e querem pertencer uns aos
outros. A família está construída como família completa, viva. É digna de
admiração a arte como o poeta sabe individualizar as relações entre os esposos,
as relações da filha com o pai e a mãe, e as do criado com os três, - como ele
sabe tornar plástica a família.
Mas as figuras não são só
construídas como partes da família; também elas, pela criação do poeta, estão
nitidamente orientadas para o acontecimento. Madalena vive com o seu desassossego,
o seu pavor, os seus pressentimentos, desde a primeira palavra, para o
acontecimento que há de vir (pelo que, simultaneamente, lhe é tirado tudo o que
de acaso pudesse ter). Ainda mais, ela é construída pelo sentimento de ter
cometido um «crime», por ter amado Manuel ainda em vida do primeiro marido. O
«crime» pertence pois inteiramente à trama do acontecimento. (Ao mesmo tempo
recai, assim, a sombra duma mácula sobre Maria como filha do pecado.) Como
peculiaridade, Maria revela propensão para a doença, e esse estado precário de
saúde de novo lhe dá predisposição para a morte final. Telmo faz parte da
família; visto, porém, morfologicamente, ele é, ao mesmo tempo, a encarnação do
passado que, ameaçador, penetra no presente e pressagia, ominoso, um futuro
fatal. Telmo e Maria estão ligados pela fé no regresso de D. Sebastião. Este
motivo não se limita a criar a atmosfera histórica, não comporta apenas
patriotismo. Se estivesse na obra só com tal fim, seria um motivo
correspondente mais ao género «play». Na realidade é um motivo de ação. Da
mesma maneira que no Rei Édipo, logo no principio, a anterior libertação de uma
catástrofe mediante a resolução do enigma por Édipo espelha o acontecimento
futuro.
Finalmente, Manuel é quem menos
parece estar construído em ordem ao acontecimento, sobretudo no princípio. Nele
vão embater sem efeito os pressentimentos e receios de Madalena, sobre ele
quase não atuam os indícios de desastres. Em compensação, é ativo, tem um
objetivo em vista, e isto numa direção que não pertence, de forma alguma, ao
acontecimento. O incêndio da própria casa quer ser um desafio aos governadores.
Porém isto não prossegue, nem com uma só palavra: fica sendo um «motivo cego».
A. Crabbé Rocha quis ver uma ligação íntima com o que vai desenrolar-se: «um
gesto destes… prepara a digna e estoica renúncia aos seus afetos, depois da
renúncia aos seus bens». Nós confessamos que nem no final conseguimos ver uma
estoica renúncia, nem conseguimos compreender o incêndio como renúncia.
Parece-nos exprimir, pelo contrário, atividade, resistência, e quase que
sentimos uma quebra para com a passividade da atitude final. Mais adiante
veremos que o «motivo cego», sem dúvida perturbador, não foi usado, somente,
devido aos seus efeitos dramáticos e teatrais, embora estes estejam projetados
em primeiro plano.
A despeito de tudo, também Manuel
está ordenado ao acontecimento, logo desde o princípio. Os pressentimentos da
mulher, na verdade, são para ele «quimeras de criança» (I, 11), mas, pouco
depois, diz: «Meu pai morreu desastrosamente caindo sobre a sua própria espada.
Quem sabe se eu morrerei nas chamas ateadas por minhas mãos?» Assim,
subordina-se como figura a um mundo em que impera o «factum», e mais ainda:
prova pertencer a uma família especialmente carregada, pois os seus membros
atraem a morte sobre si próprios. E de facto: o destino pega-lhe na palavra. No
ponto em que se mostrava ativo e parecia realizar livres resoluções (sacrifício
da própria casa e mudança para o palácio de D. João), ele só ajudava o curso da
fatalidade, suspensa sobre ele e a família.
Assim espaço e figuras mostram-se
absolutamente formados pelo acontecimento e pertencentes a um mundo que corre
para a ruína iminente. Um casamento pecaminoso (o «crime» de Madalena) e com
ele o estigma de um nascimento maculado, uma família ameaçada pelo destino (os
Sousas), mudança para um lugar ominoso, aparecimento de presságios
significativos, fatalidade das datas, o marido que volta, a renúncia ao mundo –
são estes os motivos pelos quais o acontecimento se liga ao final necessário e
que uma análise da construção poderia mostrar ainda mais nitidamente. (O
momento retardador no terceiro ato (5,12) já foi por nós discutido. Na sua
intencionalidade atua como algo de perturbador como, incidentalmente, Garrett,
como técnico e prático do teatro, colide às vezes com o trágico; comparar, por
exemplo, com a «ironia trágica» em III, 6 e outros sítios. Rodrigues Lapa
aponta estes casos nas anotações à sua edição do texto.)
Trata-se de um decurso
necessário, que conduz ao extermínio. Sobre isto o poeta não deixa dúvidas: não
morre só Maria, mas também a renúncia ao mundo por parte dos pais é extermínio;
«para nós já não há senão estas mortalhas» (III, 9); «aqui não morre ninguém
sem mim» (III, 11). E de novo nos é lícito apresentar a interpretação de
Garrett: «a catástrofe é um duplo suicídio… morreram para o mundo». É um
extermínio completo. Desaparece uma família inteira. Mais uma vez é
significativa uma alteração das fontes. Com efeito, estas falam de filhos do
primeiro casamento de Madalena. Se Garrett tivesse conservado isto, o
extermínio não seria completo, o mundo não seria fechado.
É um decurso necessário e um
extermínio necessário. Não há casos isolados, e até ações que parecem obedecer
à livre resolução servem para o decurso do acontecimento. Por detrás deste
torna-se sensível um poder unitário que tudo dirige. Anunciou-se e mostrou-se
por meio de pressentimentos, visões (Maria) e «omina»: como destino, como
«fatum».
Madalena traz em si o sentimento
de ter cometido um crime, o seu segundo casamento afigura-se-lhe ter sido um
delito. Assim surge a pergunta se o destino não encarnará a qualidade de uma
ordem moral no mundo e se o extermínio não adquire, assim, o aspeto de um
extermínio eticamente necessário. A pergunta justifica-se, mas é refutada pela
própria obra. Até no caso de reconhecermos plenamente uma culpa em Madalena, o
facto de também os outros, os inocentes, terem sido arrastados ao extermínio,
seria inquietante, pavoroso, assustador. Mas a culpa nem sequer existe,
objetivamente, para Madalena. (Objetivamente: dentro do mundo do drama.) A
palavra «crime» é um exagero compreensível do ponto de vista da sensibilidade
de Madalena, mas não a designação válida para o facto em si. A realidade não
chega para nos fazer aceitar sequer o extermínio de Madalena para
restabelecimento de um equilíbrio. Além disso, todo o mundo deste drama não é
estruturado moralmente, mas sim fatalisticamente. De novo se prova como é
estreita de mais perante esta tragédia real aquela conceção idealista do
trágico, que procura a culpa pessoal e, como fim da tragédia, exige a harmonia
da ordem mundial. Quem quisesse interpretar assim o Frei Luís de Sousa,
mostrar-se-ia demasiado mole e fraco diante da dureza e grandeza deste trágico:
uma família que deve existir, plenamente justificada e cheia de sentido, como
valor, é destruída absurdamente e, ao mesmo tempo, com pleno sentido.
Nesta altura se deveria pôr a
antiquíssima questão do «prazer pelos assuntos trágicos», o problema do sentido
de tais obras literárias no conjunto da cultura. Não a estudaremos aqui, pois
com ela entraríamos no terreno da Estética e da Filosofia da Cultura.
Ficamo-nos pela obra, porque há algo ainda a acrescentar. –
Ainda não está bem determinada a
essência trágica do drama. Sentimos nele uma grandeza especial. Resulta, em
parte, do facto de não se tratar duma família qualquer, mas da dos Sousas e
Vilhenas, como nos é revelado várias vezes e com certa insistência. E contudo
são pequenos os efeitos que disto provêm, porque a própria obra nos impede de
olhar para além da família tão limitada num mundo mais vasto e determinar nele
a categoria dela. O Frei Luís de Sousa tem pouco do drama histórico, - ou não
seria a tragédia pura que é. A grandeza entra nela sobretudo pela altura do
adversário. Pode surpreender que nunca seja evocado por um nome próprio:
através de todo o drama evita-se o termo «destino». Mas em troca topamos
palavras e expressões tais como «fatal, funesto, agouro, prognósticos,
pressentimentos de desgraça, desgraça a cair, desgraça eminente», etc. Só
aceitando-as com todo o seu significado nos mantemos sensíveis perante a
grandeza do adversário e, assim, da tragédia. Não se trata de uma catástrofe
qualquer, mas sim de uma catástrofe planeada de há muito e realizada com ímpeto
por um poder superior fatal.
Mas a impressão de grandeza
resulta ainda de um outro facto. Só agora se revela com clareza todo o
significado do motivo «sebastianista». Logo na segunda cena fundem-se os dois
motivos de regresso quando Madalena diz a Telmo: «mas as tuas palavras
misteriosas, as tuas alusões frequentes a esse desgraçado rei D. Sebastião, que
o seu mais desgraçado povo ainda não quis acreditar que morresse, por quem
ainda espera em sua leal incredulidade, - esses contínuos agouros e que andas
sempre de uma desgraça que está iminente sobre a nossa família…» Na mesma frase
ligam-se os dois motivos!
No Sebastianismo, como ele é
representado no Frei Luís de Sousa por Telmo e Maria («o nosso santo rei», diz
Maria em I, 3), reside não somente a crença em que o rei ao voltar (o
«Encoberto») conduzirá a uma época de brilho para Portugal. Infiltraram-se nele
conceções messiânicas mais antigas e relativas ao fim próximo do mundo. Com
Sebastião começará uma nova época mundial do direito e da grandeza, a qual será
a última no plano divino da salvação dos homens.
O regresso que se realiza no Frei
Luís de Sousa é, visto de lá – e temos de o ver assim, segundo a vontade da
obra -, um anti-regresso. Não leva à redenção, mas à catástrofe, e não é uma
«graça», mas sim uma «des-graça». O nimbo messiânico à volta do mito sebástico
paira à volta do regresso destruidor de D. João de Portugal. O próprio drama
obriga-nos à representação concreta de tais relações. Em III, 11 chama Maria a
D. João «homem do outro mundo», «anjo terrível», falando das suas visões. E
quando, na cena seguinte, o vê e ouve, ela grita: «É aquela voz, é ele, é ele!»
Parece-nos ser uma fraqueza artística a maneira como Garrett se aproveita,
aqui, das visões de Maria. Provém mais uma vez da vontade de ser muito claro. É
como se Garrett tivesse duvidado dos efeitos adequados do motivo
«sebastianista» por si só. O facto de os intérpretes não terem reconhecido toda
a importância do motivo parece justificar o processo do autor. Todavia, pode-se
confiar em que o fundo numinoso desse motivo tem atuado plenamente nos
espetadores do drama, mesmo que não tivessem tido consciência disso. Deve-se,
em todo o caso, àquele motivo uma boa parte da grandeza própria do Frei Luís de
Sousa.
Todos aqueles que não reconhecem
o extermínio da família como o verdadeiro fim da ação dramática ou que querem
abrandar o ímpeto da destruição por uma culpa pessoal, diminuem com isto a
grandeza da tragédia. Contudo, e isto é o último resultado acessível à
interpretação, foi o próprio Garrett que diminuiu um pouco, só um pouco, na
verdade.
Não falámos ainda do título, que,
afinal, pertence também à obra. Surpreende-nos que Garrett não tenha posto no
título um motivo central, ou a família, ou um «omen», ou qualquer outra
indicação acerca do destino, mas sim escolhesse apenas uma figura da família.
Mas Frei Luís de Sousa não é uma figura da família, não pertence mesmo, de
forma alguma, à peça. Não surge em parte alguma, não existe. Ainda não existe.
A obra conta com a cultura do espetador, que sabe que este Manuel virá a ser,
um dia, o grande Frei Luís. Manuel soçobra, e contudo, não soçobra. Sobre a
tragédia acumula-se alguma coisa diferente. E então, talvez se possa
compreender também por que motivo o poeta, no fim do primeiro ato, vai um pouco
além da estrutura da ação e da tragédia: quando Garrett constrói a figura com
traços que sobrepujam a ação, prepara-lhe uma continuação da vida. Pode ser
exterminado só parcialmente, como membro da família, mas não na totalidade,
como figura de valor autónomo. Esta figura mais completa viverá para além do
extermínio parcial e há de até desenvolver-se: o sofrimento faz dele um
escritor. Assim se sobrepõe à estrutura da tragédia – por cero só muito
ligeiramente – uma outra: o mito do artista. Evidentemente, na aceção
romântica, à pergunta: o que é o poeta?, responde um mito romântico: é quem
caminhou através do mais profundo sofrimento na terra, quem foi marcado pelo
destino.
Esta estrutura só é ligeiramente
indicada. O mundo como tal é drama de ação, tragédia, em que o acontecimento é
dirigido pelo destino. Se procurássemos um nome apropriado, só poderia ser: a
obra é uma tragédia, e tragédia de destino.
Se, realmente, olharmos um pouco
para além da obra, bastam alguns conhecimentos da história da literatura para
encontrarmos no Frei Luís de Sousa uma estrutura típica, designada como drama
de destino (Schicksalsdrama, tragédie fatalle). Como precursores é costume
nomear Lillo, Karl Phillipp Moritz, Tieck, Schiller (Braut von Messina). A
tragédia de destino (romântica) recebeu o seu cunho especial na obra 24 de
Fevereiro de Zacarias Werner. Gorner provou que para a tragédia de destino são
típicos cinco grupos de motivos: incesto, profecia de uma desgraça, maldição
sobre uma família, assassínio de parentes, regresso. Todos os motivos se
agrupam em torno de uma família e ligam-se numa cadeia ininterrupta ao serviço
de um destino imperante, que conduz à destruição dessa família. Tempo e espaço
estão carregados de fatalidade até rebentarem, isto é, são ominosos: 24 de
Fevereiro é o dia anunciado no título, a data fatal, e sete anos o espaço de
tempo fatal. Facas, punhais, quadros são os requisitos típicos, fatais, da
tragédia de destino.
Quando Garrett ironizava os
dramas do seu tempo: «uma dança macabra de assassínios, de adultérios e de
incestos, tripudiada ao som das blasfémias e das maldições» - mostra como
conhecia bem o drama de destino. Porém, com isto não pode iludir-nos: a sua
obra aproxima-se deste tipo. Uma comparação, que não podemos apresentar aqui,
poderia mostrar efetivamente o enobrecimento e subtilização íntima alcançados
pelo dramaturgo português. Garrett conhecia a tragédia alemã de destino.
Conhecia Die Braut von Messina de Schiller, conhecia o 24 de Fevereiro, de Werner,
apresentado por Mme de Stael como o maior dramaturgo alemão depois de Schiller,
cuja obra ela trata exaustivamente. Desde 1823, havia uma tradução francesa: em
1828, o «Globe», com o seu predomínio, chamou a atenção para o autor num artigo
importante. Desde 1827 – e isto deve ter sido mais importante para Garrett do
que o seu conhecimento da literatura alemã – torna-se poderosa a influência da
tragédia de destino sobre o drama francês (Ducange e Dinaux, V. Hugo,
Delavigne, A. Dumas, etc.). Mas liga-se aqui com o drama histórico: a estrutura
da tragédia e a do «play» sobrepõem-se, em graus diferentes, uma à outra. Neste
ponto, mostra-se de novo a grandeza de Garrett: deu o colorido histórico só até
ao ponto conveniente à ação trágica, mas, no todo, criou uma obra que é puro
drama de ação, pura tragédia, e que pode ser designada, talvez, como cume de
toda aquela dramaturgia pertencente à vasta montanha do drama do destino
romântico.
Parece-nos ter mostrado que a
compreensão do genérico, e só ela, é capaz de verificar o que uma obra é no
fundo. E, ao mesmo tempo, vimos que, precisamente com isto, a história da
literatura bem como a valorização das obras adquirem pontos de partida da maior
fecundidade para o seu trabalho.
Wolfgang Kayser, Análise e Interpretação da Obra Literária,
vol. II
quarta-feira, 20 de novembro de 2013
O Papel dos Portugueses na Civilização
A Mensagem, de Fernando Pessoa, é uma obra que foi escrita
num período de crise e é, para o poeta, o primeiro passo, na construção de um
outro futuro. Um futuro em que se considera possível, se se estiver na
consciência plena das limitações dos homens, assumir a derrota ultramarina e corroer
a pobreza instalada nas mentes das pessoas que se traduz em negativismo e
mediocridade, males do seu tempo.
A Mensagem surge então como a expressão poética dos mitos,
já que não se trata de uma narrativa sobre os grandes feitos dos portugueses no
passado, como em Os Lusíadas, mas sim, de um cantar de um Império de teor
espiritual. Assim não são os factos históricos propriamente ditos sobre os
nossos reis que mais importam; são sim as suas atitudes e o que eles
representam. Por isso mais do que heróis são como símbolos de diferentes
significados.
A Mensagem tem então como tema a nação portuguesa, a
essência de Portugal e a sua missão a cumprir. Encontra-se dividida em 3 partes
distintas: BRASÃO, MAR PORTUGUÊS e O ENCOBERTO.
A primeira parte - BRASÃO - corresponde ao nascimento, com
referência aos mitos e figuras históricas até D. Sebastião, identificadas nos
elementos do brasão português e que serviram de alicerces e fontes de
inspiração.
No poema “Os Castelos” começa por localizar Portugal na
Europa e em relação ao Mundo, procurando evidenciar a sua grandiosidade e o
valor simbólico do seu papel na civilização ocidental quando afirma "O rosto
com que fita é Portugal!".
Depois apresenta várias figuras deste povo heróico e
guerreiro, construtor do império marítimo; faz a homenagem aos que construíram o País (Ulisses, Viriato, Conde D. Henrique e seu filho Afonso
Henriques, D. Dinis, D. João I, D. Sebastião, D. Nuno Álvares Pereira, D.
Henrique, D. João II e Afonso de Albuquerque); e refere as mulheres
portuguesas, D. Teresa e D. Filipa de Lencastre, mães do fundador e da
"ínclita geração", como "antigo seio vigilante" ou
"humano ventre do Império".
Na segunda parte – MAR PORTUGUÊS - surge a vontade de Deus em glorificar os feitos dos portugueses. Inicia-se com o poema Infante, “Deus
quer, o homem sonha, a obra nasce.”
Nos outros poemas evoca os Descobrimentos com as
personalidades Diogo Cão, Bartolomeu Dias, Fernão de Magalhães e Vasco da Gama
e acontecimentos que exigiram uma luta contra o desconhecido e os elementos
naturais, com as glórias e as tormentas, considerando que valeu a pena. No
antepenúltimo poema evoca a partida de D. Sebastião na Última Nau e o último
poema é a Prece, onde renova o sonho.
Na terceira parte - O ENCOBERTO - aparece a crença no milagre
que livre do Presente de sofrimento e de mágoa, pois "falta cumprir-se
Portugal". Encontra-se tripartida em Os símbolos, Os avisos e Os tempos.
Manifesta a esperança e o "sonho português" no
Quinto Império, pois o atual Império encontra-se moribundo, e na vinda daquele
Salvador/Encoberto que deverá chegar para edificar o Quinto Império, um império
moral e civilizacional.
Na perspectiva de Fernando Pessoa, os Portugueses são o povo
eleito de Deus que Ele nunca abandonará pois é neles que conseguirá pôr a sua
vontade e fazer nascer a obra que redimirá toda a miséria que a Humanidade tem
sofrido. Os corações dos homens e mulheres que estejam dispostos a
sacrificar-se pela Pátria, inspirados pelo Sebastianismo, o Mito do Encoberto e
o Quinto Império, transcender-se-ão, salvando a humanidade.
A Mensagem
Esta obra de Fernando Pessoa refere o glorioso passado de Portugal, tentando
encontrar uma explicação para a antiga
grandeza e a decadência existente na época em que o livro foi escrito. É constituída
por três partes, correspondentes também à evolução do Império Português que
teve o seu nascimento, realização e a sua morte. Contudo, a “morte” neste
sentido não poderá ser entendida como um fim definitivo, uma vez que pressupõe
uma ressurreição. Esta ressurreição culmina com o aparecimento de um novo
império, o quinto império.
A 1ª parte da obra corresponde ao nascimento do império português e tem o
nome “Brasão”. Esta secção dedica-se: à localização de Portugal na Europa e em
relação ao mundo, como é exemplo no poema “O
dos Castelos” onde salienta a magnitude do país; aos heróis lendários ou
históricos, desde Ulisses a D. Sebastião e ainda à apresentação da definição de
mito ("O mito é o nada que é tudo") e do povo português como o
construtor do império marítimo. Ou seja, no geral é a fundação da
nacionalidade, daí esta ser considerada a parte do nascimento.
A 2ª parte da obra é a realização do império português e tem o nome “Mar
Português”. Apresenta poesias inspiradas na ânsia do desconhecido e no esforço
heróico da luta contra os obstáculos, tal como "O mostrengo" encontrados no mar.
É nesta parte que o poeta salienta a grandeza do sonho convertido em realidade,
unificando a ação humana e o destino traçado por Deus. O poema "O
Infante" faz parte desta secção da obra e realça a relação entre o poder
de Deus na criação, o Homem como agente representante e a obra como resultado
de toda esta relação lógica ("Deus quer, o homem sonha, a obra
nasce"). Os outros poemas evocam as glórias e as tormentas passadas ao
concretizar-se o sonho dos Descobrimentos.
A 3ª parte denomina-se “O Encoberto” e representa a decadência, a “morte”
que foi referida anteriormente. É apresentado o Império no seu estado
decadente. Portugal "a entristecer", pois "Tudo é incerto e
derradeiro. / Tudo é disperso, nada é inteiro." (“Nevoeiro”). No poema “Nevoeiro”é simbolizada a confusão, o estado caótico em que Portugal se encontrava,
tanto como Estado, como emocionalmente e mentalmente.
O que se pretendia nesta obra era o despertar das consciências, levando-as
a acreditar e desejar a grandeza outrora vivenciada. Fernando Pessoa espera
poder contribuir parar o reerguer da Pátria, relembrando, nas 1ª e 2ª partes da
Mensagem, o passado histórico grandioso e anunciando a vinda do Encoberto, na
figura mítica de D.Sebastião, que anunciaria o advento do Quinto Império.
O papel dos portugueses na civilização seria a construção deste quinto
império, um império espiritual, capaz de elevar os portugueses ao lugar de
destaque que outrora ocuparam a nível mundial. Uma supremacia e um império não
em termos materiais, mas em termos espirituais.
É nesta nova concepção de império que assenta o carácter simbólico e mítico
que enforma a obra de Fernando Pessoa.
Catarina Castela
Crítica - V Império
O Quinto Império é um poema da Mensagem, obra escrita por Fernando Pessoa, e que se insere na terceira parte, O Encoberto. Este surge na Bíblia e torna-se mito nas interpretações que sucederam ao longos dos tempos.
A Mensagem é uma obra épico-lírica, simbólica e mítica. Dentro da mitologia, esta aborda a vida e a morte de um mundo - Portugal - que será seguida de um renascimento, que é, então, o Quinto Império.
Segundo o Padre António Vieira existira 4 impérios, que eram eles os Assírios, os Persas, os Gregos e os Romanos, sendo o quinto o Império Português, que consistia numa crença messiânica e quiliástica. Na Mensagem, Pessoa anuncia então este novo império civilizacional. Este era dado como um império que ia para além do material, devido ao "intenso sofrimento patriótico". Em suma, este Quinto Império, é uma utopia através das palavras de Pessoa, e seria uma forma de legitimar o movimento autonomista português, que iria por fim à União Ibérica. A esperança deste novo império era algo espiritual, isto é, fazia parte de um sonho concebido por Portugal, algo que, sendo inconsciente, ia para além da nossa natureza. Segundo o poeta, o sonho era a chave para a felicidade, uma vez que as pessoas que se achavam felizes, viviam, na realidade, numa tristeza imensa, pois estas apenas se contentavam com aquilo que tinham, em vez de sonharem com algo que ia para além do viver. Em sumo, só é possível ascender à felicidade na consciência.
O exemplo mais consistente é o de D. Sebastião - o quinto império está relacionado com o Sebastianismo, na ordem em que este era dado como um profeta, é um dos homens de Deus, tendo por isso fermentado na memória de todos e perdurado na recordação. Este sonhou em ser imperador do Quinto Império.
Acreditava-se na formação de um império por parte do povo português, uma vez que este era capaz de tal, o que já tinha sido provado através de todas as suas vitórias, nomeadamente, através dos descobrimentos, o que fazia com que o povo lusitano tivesse, no sentido divino, um destino superior em relação aos restantes povos. Neste quinto império, que é um império global, a paz permaneceria infinitamente, em que, como referido anteriormente, constituiria uma utopia. Este é grandioso e desejado por toda a nação, que iria glorificar Portugal.
Fernando Pessoa acreditava deliberadamente de que Deus não pode abandonar o seu outro povo eleito e que depois de todas as advertências, Portugal virá a construir novamente o seu mundo de paz, por apesar de todo o sacrifício.
Em parte, o Quinto Império identifica-se com a Idade do Ouro de Ovídio e, consequentemente, com a ilha dos Amores d'Os Lusíadas, Camões, devido a toda a sua perfeição e carácter glorificador.
O Dia a que o poema se refere, é o nascimento e a plenitude da vida, ou seja, o erguer do Quinto Império, e a Noite é, então, a morte de D. Sebastião, que lutou pela sua concretização.
Em suma, o Quinto Império tem em si a«uma perfeição total, que recompensará o povo português, e que possa superar a infelicidade, iludida pela felicidade aparente, e que esta seja feita através dos sonhos. D. Sebastião sonhou e lutou pela formação deste novo império, sendo por isso recompensado e merecendo por isso, após a sua morte, repousar com Deus.
Marina Reis, nº18
A Mensagem é uma obra épico-lírica, simbólica e mítica. Dentro da mitologia, esta aborda a vida e a morte de um mundo - Portugal - que será seguida de um renascimento, que é, então, o Quinto Império.
Segundo o Padre António Vieira existira 4 impérios, que eram eles os Assírios, os Persas, os Gregos e os Romanos, sendo o quinto o Império Português, que consistia numa crença messiânica e quiliástica. Na Mensagem, Pessoa anuncia então este novo império civilizacional. Este era dado como um império que ia para além do material, devido ao "intenso sofrimento patriótico". Em suma, este Quinto Império, é uma utopia através das palavras de Pessoa, e seria uma forma de legitimar o movimento autonomista português, que iria por fim à União Ibérica. A esperança deste novo império era algo espiritual, isto é, fazia parte de um sonho concebido por Portugal, algo que, sendo inconsciente, ia para além da nossa natureza. Segundo o poeta, o sonho era a chave para a felicidade, uma vez que as pessoas que se achavam felizes, viviam, na realidade, numa tristeza imensa, pois estas apenas se contentavam com aquilo que tinham, em vez de sonharem com algo que ia para além do viver. Em sumo, só é possível ascender à felicidade na consciência.
O exemplo mais consistente é o de D. Sebastião - o quinto império está relacionado com o Sebastianismo, na ordem em que este era dado como um profeta, é um dos homens de Deus, tendo por isso fermentado na memória de todos e perdurado na recordação. Este sonhou em ser imperador do Quinto Império.
Acreditava-se na formação de um império por parte do povo português, uma vez que este era capaz de tal, o que já tinha sido provado através de todas as suas vitórias, nomeadamente, através dos descobrimentos, o que fazia com que o povo lusitano tivesse, no sentido divino, um destino superior em relação aos restantes povos. Neste quinto império, que é um império global, a paz permaneceria infinitamente, em que, como referido anteriormente, constituiria uma utopia. Este é grandioso e desejado por toda a nação, que iria glorificar Portugal.
Fernando Pessoa acreditava deliberadamente de que Deus não pode abandonar o seu outro povo eleito e que depois de todas as advertências, Portugal virá a construir novamente o seu mundo de paz, por apesar de todo o sacrifício.
Em parte, o Quinto Império identifica-se com a Idade do Ouro de Ovídio e, consequentemente, com a ilha dos Amores d'Os Lusíadas, Camões, devido a toda a sua perfeição e carácter glorificador.
O Dia a que o poema se refere, é o nascimento e a plenitude da vida, ou seja, o erguer do Quinto Império, e a Noite é, então, a morte de D. Sebastião, que lutou pela sua concretização.
Em suma, o Quinto Império tem em si a«uma perfeição total, que recompensará o povo português, e que possa superar a infelicidade, iludida pela felicidade aparente, e que esta seja feita através dos sonhos. D. Sebastião sonhou e lutou pela formação deste novo império, sendo por isso recompensado e merecendo por isso, após a sua morte, repousar com Deus.
Marina Reis, nº18
sábado, 16 de novembro de 2013
Mensagem Dois
Sem
se mexer, nem sequer por dentro, como dele dizia Álvaro de Campos, Fernando
Pessoa agudamente se observa a si mesmo e ao grupinho que com ele tinham
formado os três poetas. Era o conjunto de mais penetrante inteligência, de
maior capacidade de ironia, de menor provincianismo que jamais se constituía em
Portugal; no entanto, tendo tão superiormente ultrapassado a vida, podendo, por
exemplo, dizer a um Sá-Carneiro que o não achavam completamente civilizado,
podendo tratar a sociedade portuguesa do tempo com o desembaraço, o desdém e a
agressividade com que a trataram – apenas, de onde a onde, com algumas
ingenuidades, como a de propor Mensagem
a políticos cuja característica essencial era a de não serem nem imperiais, nem
proféticos, nem épicos mas chapadamente pedestres, retrógrados, locais – o
certo era que afinal o meio ambiente acabava por os vencer, com as bebidas, o
fumo e os cafés de Fernando Pessoa, o exílio sem glória de Ricardo Reis, a
morte prematura de Alberto Caeiro, e é fora de dúvida ser a tuberculose uma
doença de ambiente, e o cansaço permanente de um Álvaro de Campos. O que os
abatia e afinal os unia num mesmo denominador era essa falta de uma energia que
todos louvaram e todos punham como o bem mais desejável de todos os bens, mas
que apenas lhe dava para escreverem seus panfletos de várias formas e os
comentarem ou comentarem os dos outros à volta das mesas do Martinho.
O
grito de ter vindo a noite e de ser vil a alma era afinal o grito de todos, mas
nenhum tinha a coragem prática de agir. Era como se o acontecimento histórico
que emasculara a Nação os tivesse emasculado também a eles; era como se a
Europa socrática e renascentista, vingando-se de todo o desprezo cultural e
político a que sempre Portugal a tinha votado; vingando-se daquele soberbo
desdém que Fernando Pessoa melhor que qualquer outro exprimira em Mensagem, o desdém pelo estrangeiro que
apenas achara o que no encontrar português só por destino não fora achado;
vingando-se daquela autonomia religiosa que construiria a Trindade vivida de
Santa Maria, o Menino Jesus e o Espírito Santo, em oposição a uma teologia
pensada que tanto conservara de judeus, gregos e romanos; era como se ela,
entrando na Península pela mão de Carlos V e com o caminho preparado para erros
anteriores, tivesse dado o golpe fundamental para acabar de vez com os homens
que jamais desprendiam suas mãos do leme ou que tendo na mão a pena somente a
manejavam nos repousos da espada ou conservavam debaixo dos buréis os arneses
vestidos. E tão separados tinham para sempre ficado os portugueses de seus
antepassados que, mesmo quando um acaso interno os lançava aos antigos
caminhos, não mais os conheciam: Fernando Pessoa estivera em África e a África
se mascarara de Inglaterra; Álvaro de Campos estivera no Oriente e o seu
Oriente fora Port Said e não Ormuz, fora um conde francês e não um Fernão
Mendes; Alberto Caeiro estivera no Ribatejo e o seu Ribatejo nunca fora o de
Giraldo nem o de Alfarrobeira; e Ricardo Reis, partindo para o Brasil, não
soubera encontrá-lo.
O
poder de esmagar de tal forma o que fora a Nação mais original do Ocidente e a
de mais larga e profunda missão em todo o mundo só poderia ter sido dado à
Europa por um grande acerto ou por uma grande tentação; para Fernando Pessoa a
ideia de grande acerto não poderia existir, poruqe detestava a América do Norte
e a Rússia e não podia deixar de vê-las como o perfeito fruto da mentalidade
europeia; tinha por conseguinte de se voltar para a ideia de uma tentação
diabólica, mais temível do que a de quedas anteriores, e de que a humanidade só
possivelmente se veria redimida por um novo sacrifício, provavelmente pelo
sacrifício de Portugal como nação. Essa tentação não podia ter deixado de ser a
da eficiência, e a da eficiência vista não como serviço prestado aos outros,
mas como uma afirmação da própria superioridade: como da outra vez, o Diabo
pegara o pecador pelo Orgulho. E passava de coincidência interessante a
necessidade lógica que, tendo o palco da nova tentação e da nova queda sido a
Alemanha, fosse exactamente Carlos V quem tivesse vindo emascular a Espanha e
Portugal; mais a este, como inimigo fundamental porque afinal Castela sempre
tivera suas pretensões a Prússia da Península.
O
golpe essencial a favor da eficiência tinha sido o de ver a sociedade como uma
máquina de produção, em que cada qual tem de ocupar o seu lugar e de se
desempenhar de suas tarefas com o máximo de obediência a uma organização
central; para que isso se conseguisse tinham-se apurado as instituições
estatais, eclesiásticas e escolares pondo-as, no máximo que era possível, ao
serviço dos produtores. De todas elas, as que porventura tinham custado maior
mal eram exactamente as escolares, porque a sua missão consistia em fazer durar
o menos possível a criança, de modo a ter, para produzir, um maior número de
adultos: é por isso que é inteiramente errado dizer-se que, na época de sua revolução industrial
tinha a Inglaterra no serviço das minas crianças de cinco anos; o que ela tinha
trabalhando era uma coisa muito mais monstruosa: eram adultos de cinco anos de
idade.
De
então para diante em nada mais se mudou, na grande massa da educação, senão nas
técnicas de fabricar adultos pelo assassínio das crianças; a humanidade de
jeito ocidental pratica em grande escala o infanticídio do espírito, apenas o
punindo quando é físico porque isso lhe rouba definitivamente a matéria-prima
do adulto. Aquelas crianças que várias vezes Fernando Pessoa apontou como a
melhor coisa que há no mundo, aquele Menino eternamente criança e humano que
era Alberto Caeiro o Deus verdadeiro e supremo que faltava no universo, a essas
diariamente as sacrificam nas nossas escolas, diariamente as crucificam,
diariamente as imolam nas aras da Eficiência. O que permitiu à Europa dominar
Portugal, chegando ao extremo de lhe apresentar o que há de mais estrangeiro,
de mais alheio à índole nacional, como inteiramente nacionalista, foi o pecado
de ter levantado como valores supremos de vida humana os do adulto, o saber, o
trabalho e aquela separação de sujeito-objecto que permite a filosofia, a
ciência e a técnica. A Europa se vendeu ao Diabo e o dinheiro que nisso ganhou
lhe serviu para comprar Portugal.
E,
comprando-o, destruiu o último refúgio que ainda poderia haver no mundo para as
qualidades distintivamente humanas, as da imaginação, em vez do saber, do jogo,
em vez do trabalho, da totalidade, em vez da separação; são essas e não as
outras as que têm demonstrado os grandes criadores de ciência, os grandes
artistas, ou os grandes políticos: por isso os perseguimos quando vivos e os
aproveitamos, porque já eficientes, quando seguramente mortos. Não haverá
salvação para o mundo enquanto não entendermos e fizermos penetrar me nossas
consciências este facto basilar, e enquanto as nossas escolas, transformando-se
inteiramente, não forem, em lugar de máquinas de fabricar adultos, viveiros de
conservar crianças; enquanto não forem as crianças que nos levem, não pelo
caminho que uma ciência fáustica previu, mas pelo que houver, dando a mão, ao
mesmo tempo, a nós e às coisas: enquanto não for o Menino Jesus nosso Deus
verdadeiro.
É
evidente, no entanto, que a escola é apenas um dos elementos de um sistema; a
pedagogia está ligada à sociologia, à economia e à teologia racionais por laços
muito mais íntimos do que se pensa; tudo são fabricações de adultos. Pensam
eles, os pobres, que pode jamais haver no mundo alguma forma satisfatória de
governo organizado, de economia organizada ou de discurso do sobrenatural, a
não ser que os pensemos sempre dentro de um mundo de adultos: fora dele, num universo
de qualidades infantis, num Paraíso, e é por isso, porque os adultos aí eram
crianças que não havia crianças como Adão e Eva, e só as houve depois que, para
podermos comer e se vestir, principiaram eles a ser adultos, - num Paraíso,
todo o governo que não for amar será absurdo, toda a economia que não for
colher será absurda, toda a teologia que não for contemplar será absurda.
Poderia
parecer que por este caminho se poderia Fernando Pessoa opor a todo o
crescimento da técnica; mas é técnico Álvaro de Campos nos melhores momentos de
si próprio e, se não exerce a sua profissão, é decerto pelos seus arrebatos
melancólicos, mas também porque se não percebe um engenheiro naval num País que
não mais constrói navios – embora possa, como a Holanda, fabricar paquetes ou
cargueiros: e o grupinho de Pessoa sabe perfeitamente através dele que é
exactamente pela técnica, mas pela técnica tomada como um jogo geral e não como
um meio individual de ganhar dinheiro ou poder, que pode o homem abrir o seu
caminho de regresso ao Paraíso: mas, para tomar a técnica como um jogo, é
preciso que se seja anteriormente criança: a conversão religiosa ao Menino
Jesus deve preceder a revolução social. O contrário seria materialismo, coisa
de padres sem religião, como dizia Alberto Caeiro; o que também se poderia
afirmar da religião que avassalou Portugal a partir do século XVI.
Ligando
os pecados da Europa ao que foi Portugal antes de a noite vir, poder-se-ia
pensar que o D. Sebastião da Mensagem,
o Encoberto, o que há-de voltar na manhã de mais cerrado nevoeiro, quando toda
a esperança parecer perdida, é ao mesmo tempo o Menino que jamais se resignou a
ser adulto no Rei de Alcácer e o Menino que jamais se resignou a ser adulto nos
melhores homens do mundo; a grandeza qual a Sorte a não dá seria, não a
grandeza deste mundo em que logo se pensa, mas a grandeza do Reino que Jesus
afirmava ser o seu e que seria povoado dos pequeninos que a si chamava e que
apontava como modelo a seus discípulos; e à volta de D. Sebastião, iniciando no
mundo o novo Império, cada homem e cada mulher, redimindo-se de ser adultos,
iria oferecer a um Deus também Menino, libertado finalmente de sua Cruz e de
seu distante Céu, o seu ramo infantil de contempladas flores.
É
por esse Império, que nem ele nem os e seus companheiros têm a coragem ou a
força ou a hora de construir, porque numa história movida por Deus tudo vem a
ser o mesmo; é por esse Império, que não tem lugar marcado nos mapas porque
vive no sorriso, no olhar, nos sonhos dos meninos; é por esse Império, que se
tornará consciente ou inconsciente a nós, como se torna consciente ou
inconsciente a uma criança o que, dormindo, a faz sorrir; é por esse Império,
que só poderá surgir quando Portugal, sacrificando-se como Nação, apenas for um
dos elementos de uma comunidade de língua portuguesa; é por esse Império, que
já foi aurora de realidade e que hoje é apenas cavo passo que se escuta em
palácios desertos, que Fernando Pessoa pensa, escreve, concebe génios, sofre
recolhido e ignorado morre. Mas sobre ele reina, como já reinou sobre nós
outros, aquele Menino Imperador que, em oposição ao Imperador germânico, o
Imperador dos adultos, e iniciando seu Império pela abertura das prisões e pela
abundância para os pobres, coroavam, por amor do Futuro, os portugueses do
melhor tempo; e que ainda hoje coroam os homens de Santa Catarina, entre os
quais vivo e escrevo: aqui, também, esperemos, por amor do Futuro.
Agostinho da Silva, Um Fernando Pessoa
MENSAGEM UM
Àqueles
a quem, não querendo mal, também especialmente não amam concedem os deuses uma
vida fácil e benigna, que os faz, a eles e aos restantes, acreditar em
protecção celeste; aos outros, porém, àqueles cuja carreira se vê essencial aos
destinos do mundo, vendem os deuses, e bem caro, todos os dons de que os
cumularam; e, porventura, o preço mais alto que reclamam de sua mercadoria é o
de, a cada momento realmente importante da vida, nada disporem como que de
maneira fatal, deixando que o seu amado possa, em plena liberdade, escolher o
que mais é de seu agrado; e aqui a maior parte se perde: porque à chama que os
tornaria celestes preferem a temperada medianidade que para sempre os prende à
Terra.
Começa
logo a escolha pela Pátria. Para a grande maioria dos homens, se apresenta a
Pátria apenas como um acidente ou um acaso físico: são de onde nascem, e, a
pouco e pouco, a convivência dos pais, de seus conterrâneos, mais tarde a
Escola e o estado, os dois grandes organismos encarregados essencialmente de
não deixar ninguém escapar das malhas do exército social, os vão gradual e
realmente convencendo de que não poderiam ter nascido noutro lugar e de que uma
escolha futura que livremente pudessem fazer representaria sempre e de qualquer
modo uma diminuição ou uma traição. A outros, no entanto, e porque são amados
dos deuses, se apresenta o caso de modo diferente: a vida, mostrando à
superfície, como circunstância, o que é meditado e deliberado propósito de quem
rege a História, os encaminha à escolha que decidirá os seus destinos: o de
resplandecer num véu de glória, que é quase sempre, visto por dentro, um véu de
lágrimas, ou o de ser jogado fora como um vaso de oleiro que mentiu, pela má
qualidade do barro, à diligente regularidade da roda e à inventiva agilidade do
gesto. Quem pode, em raro jogo, escolher o seu País por aí mesmo está
escolhendo a sua vida: uma vida que dele mesmo se vai alimentar.
Para
Fernando Pessoa, cuja existência se iria desenrolar, tanto quanto se poderia
prever, no Portugal de seus tempos, isto é, no ponto mais baixo que poderia
atingir a descendente curva da austera, apagada e vil tristeza, a alternativa
apresentada foi a mais tentadora que se poderia imaginar: a da Inglaterra, e a
de uma Inglaterra apreendida na sua história e na sua cultura. Por uma daquelas
pequenas resoluções que movem depois as grandes molas, poderia Fernando Pessoa
ter passado inteiramente ao domínio inglês e nele se afirmado como um homem de
Império, já que o encontro se cumpria na África, ou como um homem de Universidade,
já que o encontro era igualmente num ambiente à Walter Pater, com imaginários
retratos de Inglaterra elisabeteana mascarando uma outra que apenas procurava
colocar seus capitais e manter pela força os seus mercados. Numa ou noutra
carreira, teria Fernando Pessoa sido célebre: as críticas a seus poemas
ingleses seriam apenas o prenúncio do que outros críticos viriam a escrever; um
outro Conrad, noutro domínio, se incorporaria à literatura inglesa; apenas
isso, porém.
O
que, no entanto, acontecia era que iam mais alto as ambições de Pessoa e
penetrava a sua inteligência mais longe do que a dos estadistas ingleses. Era o
mundo mais nobre, mais humano e mais divino, do que o supunha a Inglaterra e
jamais se resignaria a aceitar como permanente, apesar de todas as suas
excelências sobre os outros, apesar de não ter constituição escrita, apesar de
tender já a uma Comunidade de nações livres, um império que, na base de tudo,
mantinha as duas noções e invenções diabólicas da força e do lucro. No fim de
contas, o melhor que a Inglaterra lançava sobre o universo já Portugal o
fizera, muito antes dela; e Portugal porque não era de nenhuma Igreja
reformada, porque se mantivera fiel a Roma e à fraternidade católica, porque
nunca fora sequaz de uma ciência que tendia apenas a dominar, de uma economia
que tendia apenas a explorar e de uma política que não era outra coisa senão de
origem maquiavélica, deixara aberta, apesar das suas falhas, uma esperança para
o futuro: a de que o seu império do mar fora apenas o primeiro passo, por isso
mesmo ainda físico e político, de uma acção que depois a Europa, incompreensiva
como sempre, lhe viria cortar: a de trazer para o mundo aquele Reino que
milhões de homens quotidianamente imploram em vão.
Vai,
pois, Fernando Pessoa, deliberadamente, confirmar o acaso físico: vai nascer
português porque tem a convicção de que Deus não pode abandonar seu outro povo
eleito e de que, passado o domínio da Europa, quando a técnica tiver esgotado
todas as suas possibilidades, quando a economia protestante se verificar
plenamente anti-humana, quando a centralização estatal se revelar estéril,
Portugal virá de novo construir o seu mundo de paz, por maior que tenha de ser
o seu sacrifício: mundo de uma paz que não surja como a Romana ou a Inglesa, do
exterior para o interior, de um César para os seus súbditos, dos tribunais para
os corpos; paz que se realize antes de tudo nas almas, lei que seja
inteiramente não escrita e, no melhor de si, informulada; Reino de Deus que
surja pela transformação interior do homem.
É
como uma justificação e uma explicação deste seu acto fundamental de vida que
Fernando Pessoa, pacientemente, vai durante quase duas dezenas de anos
escrevendo Mensagem, sem dúvida a
mais importante de suas obras plenamente emparelhando com Fernão Lopes, Os Lusíadas, D. João de Castro e a História do Futuro na compreensão do que
verdadeiramente é Portugal; pela inteligência e entendimento fundamentais que
enformam toda a obra e por ter posto mais claro do que Camões na Ilha dos Amores a concepção de um
verdadeiro Império Português ou Quinto Império, veríamos até Mensagem como de importância superior à
dos Lusíadas: no total, o não é,
porque inutilmente procuramos na obra de Pessoa traços daquela espantosa e
eloquente vitalidade de Camões, daquela ígnea personalidade que em si ardendo
destruía todos os círculos limitadores que ele próprio ou os outros tentavam
traçar à sua volta; a diferença que há entre Camões e Pessoa é a diferença que
há entre um homem e a sua inteligência: mas esta, em Pessoa, mais clara e
penetrantemente brilhava; foi mais compreensiva quanto ao Passado estático e ao
Passado dinâmico, tão incisiva como a de Camões quanto ao Presente e muito mais
aguda na previsão do Futuro.
A
primeira ideia que nos dá Pessoa é a de que há um certo passado de Portugal que
não é de natureza puramente histórica: é apenas uma revelação no passado do que
é em Portugal uma perenidade; o apuramento dessa perenidade constitui o
conteúdo da primeira parte do poema, aquilo a que Pessoa chamou justamente Brasão, mas que não é para ele brasão de
túmulo, ou brasão daqueles palácios em ruínas que foram obsessão de Gomes Leal:
o seu Brasão é a nobreza em cerne, é
a essência do ser fidalgo de Portugal. Quando agir, será no Passado, a segunda
parte do Poema, Mar Português, e, no
Futuro, a terceira parte, O Encoberto.
Brasão terá como lema Bellum sine bello: é a potência sem o
acto, a energia sem a matéria, a História sem o tempo: Deus, vendo Portugal em
Si eterno, escreveria Brasão. Mar Português é o acto que não esgota a
potência, a matéria que não apaga a energia, o tempo que não liquida a
História: por isso é apenas a Possessio
Maris que o Poeta lhe deu por lema: é Portugal podendo apenas uma mínima
parte do que pode; não se entregando todo e, portanto, apenas possuindo; em Mar Português, Portugal Tem, não É. Em O Encoberto, porém,
toda a sua grandeza se revela: e o descerramento desta sua glória é quase a
renovação, agora de homens para homens, do clamor antigo dos anjos, quando o
Céu fez, por uma Terra que deles se desaviera, o sacrifício supremo de si
próprio: Pax in excelsis; paz nas
alturas em que o homem, indo além de si mesmo, se faz Santo; não a paz em que o
homem, rendendo-se, organiza, explora e defende sua própria baixeza.
Em
Brasão, Portugal é o rosto com que a
Europa fita um Ocidente que, ao plenamente ser, justificará todo o passado de
miséria que a humanidade tiver atravessado; a missão de Portugal não poderá ser
outra senão a de resgatar o que a Europa fez e de a salvar a seus próprios
olhos; por isso o seu campo, o dos Castelos, é o que serve de base ao das
Quinas, o das Chagas de Cristo, este o campo próprio de Portugal: é expirando
na cruz, esgotando-se no seu sangue e na sua piedade, que Portugal poderá
salvar o mundo. No dos Castelos, porém, Portugal porá, como seu alicerce, o que
de mais fundamental a Europa poderá ter dado ao mundo: com Ulisses, a ideia de que o mito é mais importante do que a
realidade, de que o poder vir a ser é o substracto do que é, de que as coisas
morrem à medida que são; com Viriato,
a de que a verdadeira força propulsora da vida não é a inteligência, mas a
reminiscência, e de que o ponto criador não é a definição, mas o
pressentimento; com o Conde D. Henrique a
de que a acção, se Deus é o agente, se faz para além das intenções e das
possibilidades do herói, consistindo o heroísmo apenas em não se recusar o que
não se compreende; com D. Tareja,
juntamente com a da contemporaneidade do temporal e do eterno, a de que o dever
perante a obra consiste em a ela se dedicar com a bruta e natural certeza com
que a mãe amamenta a seu filho; com D.
Afonso Henriques, a de que, para se vencerem infiéis, só vale uma
indefinível arma, que, espinosianamente, tenha como um dos aspectos o da espada
e como outro o da bênção, como um, o do corpo, como outro, o do espírito; com D. Dinis, a de que a intuição poética
vale mais do que o plano; com o sétimo castelo, o que junta D. João e D.
Filipa, o que se afirma é que a História, ao ser, toma dois aspectos: o do
homem e o da obra, sendo as modificações de qualquer desses o reflexo das
modificações do outro; e ainda, que o milagre da concepção humana consiste em
que cada filho, sendo de seus pais, não tem ao mesmo tempo nada que ver com
eles: a cada nova geração reafirma o Espírito Santo a liberdade de criar. A
Europa em que Portugal assenta não é, felizmente, a Europa cartesiana.
Se
a força de alicerce de Portugal vem de ter afirmado a sua existência de uma
Europa que duas vezes se perdeu de si própria, primeiro na Idade Média grega,
depois na Idade Média Ocidental, a sua força de salvação virá de,
voluntariamente, ter incluído em seu brasão as chagas de Cristo, não
pintando-as apenas, mas consubstanciando-as em gente sua: primeiro em D.
Duarte, o mártir do dever; depois em D. Fernando, o mártir da grandeza de alma,
superior sempre a seu destino; e em D. Pedro, o mártir da fidelidade a uma
ideia claramente pensada e claramente sentida; e em D. João, o mártir de não
querer senão o todo, ou o seu nada; e, finalmente, em D. Sebastião, o mártir do
sonho de grandeza que está para além das circunstâncias históricas. Coroando os
campos, a santidade activa de Nuno Álvares, a sua pureza guerreira, o halo que
no céu gravam suas acções terrestres; e, numa afirmação final da energia que a
tudo subestá, o Grifo com sua cabeça de águia adivinhando o mundo como um
perfeito globo, ou melhor, obrigando o mundo a ser o globo que pensava; com uma
de suas asas rasgando o firmamento num sulco de vontade, com a outra das asas o
rasgando num sulco de poder.
Sobre
a base teórica de que a vontade de Deus desperta o sonho do homem e de que o
sonho do homem provoca o surgimento da obra, e afastando por aí, para explicar
a História, tudo o que sejam causas espirituais ou materiais limitadas ao
círculo humano, e pondo nitidamente, logo no primeiro poema, que a história que
vai contar, a da Possessio Maris, não
é a História de Portugal, mas apenas o seu interrompido prólogo, Pessoa dá o
que foi o encantamento máximo dos navegadores, o de transformar o abstracto em
concreto; o que foi basilar em sua actividade, a convicção de que só em Deus,
como último porto de repouso; a vontade de um Rei de carácter sacramental que,
faz, ao mais humilde dos homens, poder mais do que todos os medos do mundo; a
glória de ter mostrado que o mar é sempre o mesmo e que a sua posse nada
significa de vital; o sentimento de que o que vale na empresa de buscar é a
busca e não o encontro; o mérito de ter sido o corpo da vontade de Deus, de ter
sido o Tempo da Eternidade a revelar; o impulso que irá conduzir a história
para além dos que o lançaram; a consciência de se ter realizado, no mundo
físico, e sem nisso estar verdadeiramente empenhado, a mais alta façanha de que
os homens se podem orgulhar; o ter ensinado que toda a descoberta se faz apenas
quando se tem a coragem de passar além dos domínios da alegria e da dor; por
fim, em Última Nau e Prece, a certeza de que, embora tenha
vindo a noite e seja vil a alma, Deus ainda reserva para o seu povo Distância a
conquistar.
É
essa Distância como distante, é essa conquista como inconquistável o que, em O Encoberto, se anuncia pelos Símbolos, pelos Avisos, o último dos quais é o do próprio Fernando Pessoa, e se
afirma triunfantemente através do negrume dos Tempos. Portugal, completando a sua obra, dará ao mundo o seu
íntimo Império feito de anseios, de lonjuras, de Reinos ilocalizáveis em tempo
ou espaço, o seu reino de alma humana continuamente sendo e continuamente
ansiosa de mais ser, tendo-se inteiramente desprendido das ilusões de uma
afirmação puramente pessoal e de uma pessoal felicidade; o mar bate nas costas
do Império, mas, se o escutarmos, pára; decerto, porém, um dia, desistindo do
nos opormos ao mundo, não mais o quereremos escutar; então, através de todo o
nevoeiro, pelo próprio nevoeiro, terá surgido a Hora; o Encoberto, em milagre
supremo, se descobrirá.
Agostinho da Silva, Um Fernando Pessoa
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