Tem de ficar reservado à
investigação posterior verificar se, dentro da tragédia, ou do drama de
desenlace, haverá tipos de estrutura mais nitidamente marcados. Nós
limitamo-nos a apresentar um exemplo prático para a compreensão da estrutura
interior da tragédia. Assim se mostrará a maneira de trabalhar deste método,
que tem em vista as últimas profundidades de uma obra. Simultaneamente
tornar-se-á nítido o que se ganha assim para o esclarecimento de toda a obra.
Escolhemos como exemplo, a obra que, segundo os críticos contemporâneos, é a
obra-prima do teatro português, em si tão escasso: o Frei Luís de Sousa de
Almeida Garrett. Na Alemanha a obra foi traduzida por W. v. Lukner (1847),
Georg Winkler (1899) e outros, e foi também representada ocasionalmente. Por
pouco não encontrou o caminho do teatro de ópera: F. Mendelssohn-Bartholdy
pediu ao Conde Schack um libreto de ópera que se chamaria Manuel de Sousa.
O assunto em si é histórico:
Manuel de Sousa (1555-1632) tinha desposado a viúva de um nobre caído na
funesta batalha de Alcácer Quibir; o regresso do que havia sido dado por morto
destruiu a família e fez entrar os esposos em conventos. Sob o nome de Frei
Luís de Sousa chegou Manuel mais tarde a ser um escritor célebre. (Ademais
Manuel fora na sua juventude cativo de mouros que o levaram para Argel; ali se
encontrara com Cervantes que em Persiles y Sigismunda faz contar ao seu
companheiro de desgraça uma romanesca história da sua vida.)
Se a categoria do drama é quase
irrefutada, a sua interpretação tem dado lugar a muitas discussões. Farinelli
interpretou a tragédia como tragédia de carácter (citado por Joaquim de Araújo,
o Frei Luís de Sousa, pág.65). António Arroyo (A figura dramática de Maria de
Noronha, Sep. de A Águia, 1922) focava Maria como verdadeiro centro; ela seria,
por um lado, símbolo da idade de ouro moribunda; por outro, seria uma
duplicação de Manuel de Sousa e, como tal, encarnação do seu espírito poético.
Outros consideravam o Cristianismo a ideia verdadeiramente construtiva da obra;
da retirada das pessoas principais para o claustro faziam um apelo ao leitor
para que pensasse na salvação da sua alma. A. J. da Costa Pimpão (Biblos, XVI) colocou
de novo Maria no centro e interpretou também a génese do drama partindo da
ansiedade do poeta pela sua própria filha ilegítima, o que, aliás, já tinham
suspeitado Th. Braga e Le Gentil. Andrée Crabbé Rocha (O Teatro de Garrett,
1944), que conseguiu projetar plena luz sobre a génese e o problema das fontes,
nomeou «quatro pontos cardeais» que, simultaneamente, seriam traços essenciais
do português (pág.166): «o erotismo atenuado pelo medo do inferno, as forças
transcendentes, fatais e conjugadas da igreja, a honra e o brio do português
velho, e o idealismo sentimental de Maria.» A estas «dominantes» teria Garrett
dado «corpo e seiva». Aqui, a autora força a um salto, pois não explica como
aconteceu este «dar corpo e seiva». Não seria talvez também tão simples provar
como se pode construir uma obra com estes quatro impulsos ideais.
Antecipando: Se olharmos da obra
para a sua génese, não acreditamos nos quatro impulsos ideais, nem, aliás, em
qualquer dos outros enunciados, tais como idade de ouro, cristianismo, filha
ilegítima. E, olhando da obra para diante, não cremos que a sua importância e
influência residam nas quatro dominantes (embora, sem contestação, elas
pertençam ao fundo ideológico da obra). A nossa primeira resposta é, para ambos
os lados: a obra foi criada – e atua – como tragédia.
O alto apreço em que é tida,
precisamente no estrangeiro, apreço que se reflete nos esforços de vários
investigadores estrangeiros em torno deste drama, não se deve, com certeza, ao
seu carácter informativo, i. é, documental da maneira de ser portuguesa, mas
sim à sua categoria artística. E isto quer dizer: ao seu carácter de tragédia.
Que o incentivo decisivo foi a intenção de escrever uma autêntica tragédia,
isto poderia provar-se suficientemente com as palavras do autor, em que neste
caso acreditamos plenamente.
Delas depreendemos ainda mais:
que ele queria escrever uma tragédia com a simplicidade e concentração antigas.
Na sua «fonte» descobriu ele um argumento que continha «toda a simplicidade de
uma fábula trágica antiga».
Ao procurar entender a estrutura
especial de tragédia desta obra (toda a parte filológica foi definitivamente
esclarecida por Andrée Crabbé Rocha), partimos da fábula. Pode reproduzir-se
aproximadamente assim: Uma mulher, a quem foi anunciada a morte do marido,
longe da pátria, casa com um outro, que, já antes, lhe não era indiferente.
Deste casamento nasce uma filha. Anos volvidos, regressa o primeiro marido tido
por morto. O seu regresso destrói toda a família.
Fábula na verdade simples, na qual,
aliás, nos impressiona imediatamente que as pessoas não podem desenvolver uma
atividade palpável: não é, por certo, uma fábula trágica no sentido da estética
idealista. Aproximemo-nos dela sem tais preconceitos, e então temos a esperar
da essência do trágico que a situação da família nos seja exposta, no momento
do regresso, como absolutamente irremediável. O mundo de Garrett é com efeito
de tal feição que o regresso do primeiro marido causa a desonra da mulher e da
filha e lhes tira assim toda a base da existência. (Outras elaborações do
motivo do marido que regressa mostram que o mundo poético pode também ser
organizado diversamente. Não faltam comédias sobre este motivo. Em Garrett é
sobretudo a religiosidade que contribui para o rigor do seu mundo e que, já por
isso, resulta ser um meio e não um fim.) Além disso, compreende-se logo que
Garrett não marcou para o seu drama a mesma sequência de tempo que está
incluída na fábula, mas procedeu, antes, a uma forte concentração. Escolheu a
forma do drama analítico, em que os acontecimentos no palco nos apresentam
apenas a última parte de um extenso acontecer, comprimida num breve espaço de
tempo.
Porém o tempo, neste drama, tem
ainda peculiaridades especiais. Como subdivisões não há nele só horas, dias e
anos, mas datas e espaços de tempo estranhamente carregados. Tais datas
suscitam um acontecimento fatal, indicam uma potência escura e a sua atuação
quase rítmica. Sete anos se passam entre a morte do primeiro e o casamento com
o segundo marido (as «fontes» falam de 17 a 18 anos), duas vezes sete anos
decorreram desde então. A sexta-feira é um dia especial para Madalena (II, 5);
em II, 10 ouvimos que o seu casamento, a fatídica batalha e o conhecimento com
Manuel caem no mesmo dia do ano; é neste dia também que o primeiro marido
regressa. Também para o Romeiro o dia do regresso é, assim, uma data especial
(II, 14), etc. As figuras evidenciam um
vivo sentimento desta fatalidade de datas e espaços de tempo, sentem medo da «hora
fatal» (III, 7), do «dia fatal» (II, 10 e mais vezes). Esta estruturação do
tempo é obra de Garrett, e, precisamente porque o é, parece lícito admitir já
aqui que ele é de força expressiva quanto à essência do drama, à sua estrutura
de tragédia.
Concentração é a primeira
característica da estruturação do tempo; caracteriza também a estruturação do
espaço. O primeiro ato passa-se no palácio de Manuel, o segundo e o terceiro no
de D. João de Portugal. A mutação de lugar é forçosamente motivada, mais ainda:
o primeiro cenário desaparece, deixa de existir – Manuel deita fogo ao seu
palácio (traço histórico); o cenário do segundo e terceiro atos representa um
mundo absolutamente fechado em si próprio. Porém, como o tempo, também o espaço
é de género especial. Não que ele tome o papel principal: não devemos ver nele,
por exemplo, o que era um solar à volta de 1600 e como lá se vivia. O local da
ação é formado por categorias semelhantes às do tempo, quer dizer, a partir do
acontecimento. O palácio pertence ao marido que regressa, insufla vida ao passado.
Neste mundo dramático, as recordações transformam-se logo em pressentimentos. O
espaço anuncia a desgraça que se aproxima, tem uma ação opressiva, fatal,
ominosa. Pois um «omen» é a anunciação sensível de uma fatalidade iminente. Há
no espaço dois sinais especialmente pressagos e ominosos. Quando arde o retrato
de D. Manuel, isto aparece-nos, no mundo do drama, como indício certo de
desgraça e assim é sentido pelas figuras. Atua também como «omen» o segundo
retrato, o de D. João de Portugal. Madalena e também Maria param diante dele
como que fascinadas. No fim do segundo ato torna-se meio de reconhecimento.
O espaço é formado pelo
acontecimento. Não temos diante de nós um drama de espaço, nem tão-pouco um
drama de personagem. Nas personagens mostra-se imediatamente a mesma
concentração: são em número reduzido. Estão relacionadas umas com as outras de
modo surpreendente e formam um todo fechado, ou seja uma família. Compõe-se de
pai, mãe, filha, e criado que é parte integrante da família. A única figura «técnica»
de importância é ainda irmão de Manuel. Pode-se quase dizer: a família é uma
personagem, é a personagem do drama.
Se, partindo de uma determinada
conceção do trágico, se exige que uma figura trágica tenha de ser sempre uma
figura ativa, que se empenhe na defesa de uma ideia, neste exemplo se revela a
estreiteza de tal conceção. Pois o nosso ponto de partida, a que nos
conservamos fiéis, é a de que o Frei Luís de Sousa é uma autêntica tragédia.
Nenhum membro desta família (e esta, como todo, naturalmente também não) é um
herói ativo, nenhum pretende defender ideias (a aparente exceção, o «desafio»
lançado por Manuel aos governadores ao deitar fogo ao palácio, será ainda
debatido por nós). Podemos, decerto, dizer que esta família se que conservar como
família, que estes seres humanos se pertencem e querem pertencer uns aos
outros. A família está construída como família completa, viva. É digna de
admiração a arte como o poeta sabe individualizar as relações entre os esposos,
as relações da filha com o pai e a mãe, e as do criado com os três, - como ele
sabe tornar plástica a família.
Mas as figuras não são só
construídas como partes da família; também elas, pela criação do poeta, estão
nitidamente orientadas para o acontecimento. Madalena vive com o seu desassossego,
o seu pavor, os seus pressentimentos, desde a primeira palavra, para o
acontecimento que há de vir (pelo que, simultaneamente, lhe é tirado tudo o que
de acaso pudesse ter). Ainda mais, ela é construída pelo sentimento de ter
cometido um «crime», por ter amado Manuel ainda em vida do primeiro marido. O
«crime» pertence pois inteiramente à trama do acontecimento. (Ao mesmo tempo
recai, assim, a sombra duma mácula sobre Maria como filha do pecado.) Como
peculiaridade, Maria revela propensão para a doença, e esse estado precário de
saúde de novo lhe dá predisposição para a morte final. Telmo faz parte da
família; visto, porém, morfologicamente, ele é, ao mesmo tempo, a encarnação do
passado que, ameaçador, penetra no presente e pressagia, ominoso, um futuro
fatal. Telmo e Maria estão ligados pela fé no regresso de D. Sebastião. Este
motivo não se limita a criar a atmosfera histórica, não comporta apenas
patriotismo. Se estivesse na obra só com tal fim, seria um motivo
correspondente mais ao género «play». Na realidade é um motivo de ação. Da
mesma maneira que no Rei Édipo, logo no principio, a anterior libertação de uma
catástrofe mediante a resolução do enigma por Édipo espelha o acontecimento
futuro.
Finalmente, Manuel é quem menos
parece estar construído em ordem ao acontecimento, sobretudo no princípio. Nele
vão embater sem efeito os pressentimentos e receios de Madalena, sobre ele
quase não atuam os indícios de desastres. Em compensação, é ativo, tem um
objetivo em vista, e isto numa direção que não pertence, de forma alguma, ao
acontecimento. O incêndio da própria casa quer ser um desafio aos governadores.
Porém isto não prossegue, nem com uma só palavra: fica sendo um «motivo cego».
A. Crabbé Rocha quis ver uma ligação íntima com o que vai desenrolar-se: «um
gesto destes… prepara a digna e estoica renúncia aos seus afetos, depois da
renúncia aos seus bens». Nós confessamos que nem no final conseguimos ver uma
estoica renúncia, nem conseguimos compreender o incêndio como renúncia.
Parece-nos exprimir, pelo contrário, atividade, resistência, e quase que
sentimos uma quebra para com a passividade da atitude final. Mais adiante
veremos que o «motivo cego», sem dúvida perturbador, não foi usado, somente,
devido aos seus efeitos dramáticos e teatrais, embora estes estejam projetados
em primeiro plano.
A despeito de tudo, também Manuel
está ordenado ao acontecimento, logo desde o princípio. Os pressentimentos da
mulher, na verdade, são para ele «quimeras de criança» (I, 11), mas, pouco
depois, diz: «Meu pai morreu desastrosamente caindo sobre a sua própria espada.
Quem sabe se eu morrerei nas chamas ateadas por minhas mãos?» Assim,
subordina-se como figura a um mundo em que impera o «factum», e mais ainda:
prova pertencer a uma família especialmente carregada, pois os seus membros
atraem a morte sobre si próprios. E de facto: o destino pega-lhe na palavra. No
ponto em que se mostrava ativo e parecia realizar livres resoluções (sacrifício
da própria casa e mudança para o palácio de D. João), ele só ajudava o curso da
fatalidade, suspensa sobre ele e a família.
Assim espaço e figuras mostram-se
absolutamente formados pelo acontecimento e pertencentes a um mundo que corre
para a ruína iminente. Um casamento pecaminoso (o «crime» de Madalena) e com
ele o estigma de um nascimento maculado, uma família ameaçada pelo destino (os
Sousas), mudança para um lugar ominoso, aparecimento de presságios
significativos, fatalidade das datas, o marido que volta, a renúncia ao mundo –
são estes os motivos pelos quais o acontecimento se liga ao final necessário e
que uma análise da construção poderia mostrar ainda mais nitidamente. (O
momento retardador no terceiro ato (5,12) já foi por nós discutido. Na sua
intencionalidade atua como algo de perturbador como, incidentalmente, Garrett,
como técnico e prático do teatro, colide às vezes com o trágico; comparar, por
exemplo, com a «ironia trágica» em III, 6 e outros sítios. Rodrigues Lapa
aponta estes casos nas anotações à sua edição do texto.)
Trata-se de um decurso
necessário, que conduz ao extermínio. Sobre isto o poeta não deixa dúvidas: não
morre só Maria, mas também a renúncia ao mundo por parte dos pais é extermínio;
«para nós já não há senão estas mortalhas» (III, 9); «aqui não morre ninguém
sem mim» (III, 11). E de novo nos é lícito apresentar a interpretação de
Garrett: «a catástrofe é um duplo suicídio… morreram para o mundo». É um
extermínio completo. Desaparece uma família inteira. Mais uma vez é
significativa uma alteração das fontes. Com efeito, estas falam de filhos do
primeiro casamento de Madalena. Se Garrett tivesse conservado isto, o
extermínio não seria completo, o mundo não seria fechado.
É um decurso necessário e um
extermínio necessário. Não há casos isolados, e até ações que parecem obedecer
à livre resolução servem para o decurso do acontecimento. Por detrás deste
torna-se sensível um poder unitário que tudo dirige. Anunciou-se e mostrou-se
por meio de pressentimentos, visões (Maria) e «omina»: como destino, como
«fatum».
Madalena traz em si o sentimento
de ter cometido um crime, o seu segundo casamento afigura-se-lhe ter sido um
delito. Assim surge a pergunta se o destino não encarnará a qualidade de uma
ordem moral no mundo e se o extermínio não adquire, assim, o aspeto de um
extermínio eticamente necessário. A pergunta justifica-se, mas é refutada pela
própria obra. Até no caso de reconhecermos plenamente uma culpa em Madalena, o
facto de também os outros, os inocentes, terem sido arrastados ao extermínio,
seria inquietante, pavoroso, assustador. Mas a culpa nem sequer existe,
objetivamente, para Madalena. (Objetivamente: dentro do mundo do drama.) A
palavra «crime» é um exagero compreensível do ponto de vista da sensibilidade
de Madalena, mas não a designação válida para o facto em si. A realidade não
chega para nos fazer aceitar sequer o extermínio de Madalena para
restabelecimento de um equilíbrio. Além disso, todo o mundo deste drama não é
estruturado moralmente, mas sim fatalisticamente. De novo se prova como é
estreita de mais perante esta tragédia real aquela conceção idealista do
trágico, que procura a culpa pessoal e, como fim da tragédia, exige a harmonia
da ordem mundial. Quem quisesse interpretar assim o Frei Luís de Sousa,
mostrar-se-ia demasiado mole e fraco diante da dureza e grandeza deste trágico:
uma família que deve existir, plenamente justificada e cheia de sentido, como
valor, é destruída absurdamente e, ao mesmo tempo, com pleno sentido.
Nesta altura se deveria pôr a
antiquíssima questão do «prazer pelos assuntos trágicos», o problema do sentido
de tais obras literárias no conjunto da cultura. Não a estudaremos aqui, pois
com ela entraríamos no terreno da Estética e da Filosofia da Cultura.
Ficamo-nos pela obra, porque há algo ainda a acrescentar. –
Ainda não está bem determinada a
essência trágica do drama. Sentimos nele uma grandeza especial. Resulta, em
parte, do facto de não se tratar duma família qualquer, mas da dos Sousas e
Vilhenas, como nos é revelado várias vezes e com certa insistência. E contudo
são pequenos os efeitos que disto provêm, porque a própria obra nos impede de
olhar para além da família tão limitada num mundo mais vasto e determinar nele
a categoria dela. O Frei Luís de Sousa tem pouco do drama histórico, - ou não
seria a tragédia pura que é. A grandeza entra nela sobretudo pela altura do
adversário. Pode surpreender que nunca seja evocado por um nome próprio:
através de todo o drama evita-se o termo «destino». Mas em troca topamos
palavras e expressões tais como «fatal, funesto, agouro, prognósticos,
pressentimentos de desgraça, desgraça a cair, desgraça eminente», etc. Só
aceitando-as com todo o seu significado nos mantemos sensíveis perante a
grandeza do adversário e, assim, da tragédia. Não se trata de uma catástrofe
qualquer, mas sim de uma catástrofe planeada de há muito e realizada com ímpeto
por um poder superior fatal.
Mas a impressão de grandeza
resulta ainda de um outro facto. Só agora se revela com clareza todo o
significado do motivo «sebastianista». Logo na segunda cena fundem-se os dois
motivos de regresso quando Madalena diz a Telmo: «mas as tuas palavras
misteriosas, as tuas alusões frequentes a esse desgraçado rei D. Sebastião, que
o seu mais desgraçado povo ainda não quis acreditar que morresse, por quem
ainda espera em sua leal incredulidade, - esses contínuos agouros e que andas
sempre de uma desgraça que está iminente sobre a nossa família…» Na mesma frase
ligam-se os dois motivos!
No Sebastianismo, como ele é
representado no Frei Luís de Sousa por Telmo e Maria («o nosso santo rei», diz
Maria em I, 3), reside não somente a crença em que o rei ao voltar (o
«Encoberto») conduzirá a uma época de brilho para Portugal. Infiltraram-se nele
conceções messiânicas mais antigas e relativas ao fim próximo do mundo. Com
Sebastião começará uma nova época mundial do direito e da grandeza, a qual será
a última no plano divino da salvação dos homens.
O regresso que se realiza no Frei
Luís de Sousa é, visto de lá – e temos de o ver assim, segundo a vontade da
obra -, um anti-regresso. Não leva à redenção, mas à catástrofe, e não é uma
«graça», mas sim uma «des-graça». O nimbo messiânico à volta do mito sebástico
paira à volta do regresso destruidor de D. João de Portugal. O próprio drama
obriga-nos à representação concreta de tais relações. Em III, 11 chama Maria a
D. João «homem do outro mundo», «anjo terrível», falando das suas visões. E
quando, na cena seguinte, o vê e ouve, ela grita: «É aquela voz, é ele, é ele!»
Parece-nos ser uma fraqueza artística a maneira como Garrett se aproveita,
aqui, das visões de Maria. Provém mais uma vez da vontade de ser muito claro. É
como se Garrett tivesse duvidado dos efeitos adequados do motivo
«sebastianista» por si só. O facto de os intérpretes não terem reconhecido toda
a importância do motivo parece justificar o processo do autor. Todavia, pode-se
confiar em que o fundo numinoso desse motivo tem atuado plenamente nos
espetadores do drama, mesmo que não tivessem tido consciência disso. Deve-se,
em todo o caso, àquele motivo uma boa parte da grandeza própria do Frei Luís de
Sousa.
Todos aqueles que não reconhecem
o extermínio da família como o verdadeiro fim da ação dramática ou que querem
abrandar o ímpeto da destruição por uma culpa pessoal, diminuem com isto a
grandeza da tragédia. Contudo, e isto é o último resultado acessível à
interpretação, foi o próprio Garrett que diminuiu um pouco, só um pouco, na
verdade.
Não falámos ainda do título, que,
afinal, pertence também à obra. Surpreende-nos que Garrett não tenha posto no
título um motivo central, ou a família, ou um «omen», ou qualquer outra
indicação acerca do destino, mas sim escolhesse apenas uma figura da família.
Mas Frei Luís de Sousa não é uma figura da família, não pertence mesmo, de
forma alguma, à peça. Não surge em parte alguma, não existe. Ainda não existe.
A obra conta com a cultura do espetador, que sabe que este Manuel virá a ser,
um dia, o grande Frei Luís. Manuel soçobra, e contudo, não soçobra. Sobre a
tragédia acumula-se alguma coisa diferente. E então, talvez se possa
compreender também por que motivo o poeta, no fim do primeiro ato, vai um pouco
além da estrutura da ação e da tragédia: quando Garrett constrói a figura com
traços que sobrepujam a ação, prepara-lhe uma continuação da vida. Pode ser
exterminado só parcialmente, como membro da família, mas não na totalidade,
como figura de valor autónomo. Esta figura mais completa viverá para além do
extermínio parcial e há de até desenvolver-se: o sofrimento faz dele um
escritor. Assim se sobrepõe à estrutura da tragédia – por cero só muito
ligeiramente – uma outra: o mito do artista. Evidentemente, na aceção
romântica, à pergunta: o que é o poeta?, responde um mito romântico: é quem
caminhou através do mais profundo sofrimento na terra, quem foi marcado pelo
destino.
Esta estrutura só é ligeiramente
indicada. O mundo como tal é drama de ação, tragédia, em que o acontecimento é
dirigido pelo destino. Se procurássemos um nome apropriado, só poderia ser: a
obra é uma tragédia, e tragédia de destino.
Se, realmente, olharmos um pouco
para além da obra, bastam alguns conhecimentos da história da literatura para
encontrarmos no Frei Luís de Sousa uma estrutura típica, designada como drama
de destino (Schicksalsdrama, tragédie fatalle). Como precursores é costume
nomear Lillo, Karl Phillipp Moritz, Tieck, Schiller (Braut von Messina). A
tragédia de destino (romântica) recebeu o seu cunho especial na obra 24 de
Fevereiro de Zacarias Werner. Gorner provou que para a tragédia de destino são
típicos cinco grupos de motivos: incesto, profecia de uma desgraça, maldição
sobre uma família, assassínio de parentes, regresso. Todos os motivos se
agrupam em torno de uma família e ligam-se numa cadeia ininterrupta ao serviço
de um destino imperante, que conduz à destruição dessa família. Tempo e espaço
estão carregados de fatalidade até rebentarem, isto é, são ominosos: 24 de
Fevereiro é o dia anunciado no título, a data fatal, e sete anos o espaço de
tempo fatal. Facas, punhais, quadros são os requisitos típicos, fatais, da
tragédia de destino.
Quando Garrett ironizava os
dramas do seu tempo: «uma dança macabra de assassínios, de adultérios e de
incestos, tripudiada ao som das blasfémias e das maldições» - mostra como
conhecia bem o drama de destino. Porém, com isto não pode iludir-nos: a sua
obra aproxima-se deste tipo. Uma comparação, que não podemos apresentar aqui,
poderia mostrar efetivamente o enobrecimento e subtilização íntima alcançados
pelo dramaturgo português. Garrett conhecia a tragédia alemã de destino.
Conhecia Die Braut von Messina de Schiller, conhecia o 24 de Fevereiro, de Werner,
apresentado por Mme de Stael como o maior dramaturgo alemão depois de Schiller,
cuja obra ela trata exaustivamente. Desde 1823, havia uma tradução francesa: em
1828, o «Globe», com o seu predomínio, chamou a atenção para o autor num artigo
importante. Desde 1827 – e isto deve ter sido mais importante para Garrett do
que o seu conhecimento da literatura alemã – torna-se poderosa a influência da
tragédia de destino sobre o drama francês (Ducange e Dinaux, V. Hugo,
Delavigne, A. Dumas, etc.). Mas liga-se aqui com o drama histórico: a estrutura
da tragédia e a do «play» sobrepõem-se, em graus diferentes, uma à outra. Neste
ponto, mostra-se de novo a grandeza de Garrett: deu o colorido histórico só até
ao ponto conveniente à ação trágica, mas, no todo, criou uma obra que é puro
drama de ação, pura tragédia, e que pode ser designada, talvez, como cume de
toda aquela dramaturgia pertencente à vasta montanha do drama do destino
romântico.
Parece-nos ter mostrado que a
compreensão do genérico, e só ela, é capaz de verificar o que uma obra é no
fundo. E, ao mesmo tempo, vimos que, precisamente com isto, a história da
literatura bem como a valorização das obras adquirem pontos de partida da maior
fecundidade para o seu trabalho.
Wolfgang Kayser, Análise e Interpretação da Obra Literária,
vol. II
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