Àqueles
a quem, não querendo mal, também especialmente não amam concedem os deuses uma
vida fácil e benigna, que os faz, a eles e aos restantes, acreditar em
protecção celeste; aos outros, porém, àqueles cuja carreira se vê essencial aos
destinos do mundo, vendem os deuses, e bem caro, todos os dons de que os
cumularam; e, porventura, o preço mais alto que reclamam de sua mercadoria é o
de, a cada momento realmente importante da vida, nada disporem como que de
maneira fatal, deixando que o seu amado possa, em plena liberdade, escolher o
que mais é de seu agrado; e aqui a maior parte se perde: porque à chama que os
tornaria celestes preferem a temperada medianidade que para sempre os prende à
Terra.
Começa
logo a escolha pela Pátria. Para a grande maioria dos homens, se apresenta a
Pátria apenas como um acidente ou um acaso físico: são de onde nascem, e, a
pouco e pouco, a convivência dos pais, de seus conterrâneos, mais tarde a
Escola e o estado, os dois grandes organismos encarregados essencialmente de
não deixar ninguém escapar das malhas do exército social, os vão gradual e
realmente convencendo de que não poderiam ter nascido noutro lugar e de que uma
escolha futura que livremente pudessem fazer representaria sempre e de qualquer
modo uma diminuição ou uma traição. A outros, no entanto, e porque são amados
dos deuses, se apresenta o caso de modo diferente: a vida, mostrando à
superfície, como circunstância, o que é meditado e deliberado propósito de quem
rege a História, os encaminha à escolha que decidirá os seus destinos: o de
resplandecer num véu de glória, que é quase sempre, visto por dentro, um véu de
lágrimas, ou o de ser jogado fora como um vaso de oleiro que mentiu, pela má
qualidade do barro, à diligente regularidade da roda e à inventiva agilidade do
gesto. Quem pode, em raro jogo, escolher o seu País por aí mesmo está
escolhendo a sua vida: uma vida que dele mesmo se vai alimentar.
Para
Fernando Pessoa, cuja existência se iria desenrolar, tanto quanto se poderia
prever, no Portugal de seus tempos, isto é, no ponto mais baixo que poderia
atingir a descendente curva da austera, apagada e vil tristeza, a alternativa
apresentada foi a mais tentadora que se poderia imaginar: a da Inglaterra, e a
de uma Inglaterra apreendida na sua história e na sua cultura. Por uma daquelas
pequenas resoluções que movem depois as grandes molas, poderia Fernando Pessoa
ter passado inteiramente ao domínio inglês e nele se afirmado como um homem de
Império, já que o encontro se cumpria na África, ou como um homem de Universidade,
já que o encontro era igualmente num ambiente à Walter Pater, com imaginários
retratos de Inglaterra elisabeteana mascarando uma outra que apenas procurava
colocar seus capitais e manter pela força os seus mercados. Numa ou noutra
carreira, teria Fernando Pessoa sido célebre: as críticas a seus poemas
ingleses seriam apenas o prenúncio do que outros críticos viriam a escrever; um
outro Conrad, noutro domínio, se incorporaria à literatura inglesa; apenas
isso, porém.
O
que, no entanto, acontecia era que iam mais alto as ambições de Pessoa e
penetrava a sua inteligência mais longe do que a dos estadistas ingleses. Era o
mundo mais nobre, mais humano e mais divino, do que o supunha a Inglaterra e
jamais se resignaria a aceitar como permanente, apesar de todas as suas
excelências sobre os outros, apesar de não ter constituição escrita, apesar de
tender já a uma Comunidade de nações livres, um império que, na base de tudo,
mantinha as duas noções e invenções diabólicas da força e do lucro. No fim de
contas, o melhor que a Inglaterra lançava sobre o universo já Portugal o
fizera, muito antes dela; e Portugal porque não era de nenhuma Igreja
reformada, porque se mantivera fiel a Roma e à fraternidade católica, porque
nunca fora sequaz de uma ciência que tendia apenas a dominar, de uma economia
que tendia apenas a explorar e de uma política que não era outra coisa senão de
origem maquiavélica, deixara aberta, apesar das suas falhas, uma esperança para
o futuro: a de que o seu império do mar fora apenas o primeiro passo, por isso
mesmo ainda físico e político, de uma acção que depois a Europa, incompreensiva
como sempre, lhe viria cortar: a de trazer para o mundo aquele Reino que
milhões de homens quotidianamente imploram em vão.
Vai,
pois, Fernando Pessoa, deliberadamente, confirmar o acaso físico: vai nascer
português porque tem a convicção de que Deus não pode abandonar seu outro povo
eleito e de que, passado o domínio da Europa, quando a técnica tiver esgotado
todas as suas possibilidades, quando a economia protestante se verificar
plenamente anti-humana, quando a centralização estatal se revelar estéril,
Portugal virá de novo construir o seu mundo de paz, por maior que tenha de ser
o seu sacrifício: mundo de uma paz que não surja como a Romana ou a Inglesa, do
exterior para o interior, de um César para os seus súbditos, dos tribunais para
os corpos; paz que se realize antes de tudo nas almas, lei que seja
inteiramente não escrita e, no melhor de si, informulada; Reino de Deus que
surja pela transformação interior do homem.
É
como uma justificação e uma explicação deste seu acto fundamental de vida que
Fernando Pessoa, pacientemente, vai durante quase duas dezenas de anos
escrevendo Mensagem, sem dúvida a
mais importante de suas obras plenamente emparelhando com Fernão Lopes, Os Lusíadas, D. João de Castro e a História do Futuro na compreensão do que
verdadeiramente é Portugal; pela inteligência e entendimento fundamentais que
enformam toda a obra e por ter posto mais claro do que Camões na Ilha dos Amores a concepção de um
verdadeiro Império Português ou Quinto Império, veríamos até Mensagem como de importância superior à
dos Lusíadas: no total, o não é,
porque inutilmente procuramos na obra de Pessoa traços daquela espantosa e
eloquente vitalidade de Camões, daquela ígnea personalidade que em si ardendo
destruía todos os círculos limitadores que ele próprio ou os outros tentavam
traçar à sua volta; a diferença que há entre Camões e Pessoa é a diferença que
há entre um homem e a sua inteligência: mas esta, em Pessoa, mais clara e
penetrantemente brilhava; foi mais compreensiva quanto ao Passado estático e ao
Passado dinâmico, tão incisiva como a de Camões quanto ao Presente e muito mais
aguda na previsão do Futuro.
A
primeira ideia que nos dá Pessoa é a de que há um certo passado de Portugal que
não é de natureza puramente histórica: é apenas uma revelação no passado do que
é em Portugal uma perenidade; o apuramento dessa perenidade constitui o
conteúdo da primeira parte do poema, aquilo a que Pessoa chamou justamente Brasão, mas que não é para ele brasão de
túmulo, ou brasão daqueles palácios em ruínas que foram obsessão de Gomes Leal:
o seu Brasão é a nobreza em cerne, é
a essência do ser fidalgo de Portugal. Quando agir, será no Passado, a segunda
parte do Poema, Mar Português, e, no
Futuro, a terceira parte, O Encoberto.
Brasão terá como lema Bellum sine bello: é a potência sem o
acto, a energia sem a matéria, a História sem o tempo: Deus, vendo Portugal em
Si eterno, escreveria Brasão. Mar Português é o acto que não esgota a
potência, a matéria que não apaga a energia, o tempo que não liquida a
História: por isso é apenas a Possessio
Maris que o Poeta lhe deu por lema: é Portugal podendo apenas uma mínima
parte do que pode; não se entregando todo e, portanto, apenas possuindo; em Mar Português, Portugal Tem, não É. Em O Encoberto, porém,
toda a sua grandeza se revela: e o descerramento desta sua glória é quase a
renovação, agora de homens para homens, do clamor antigo dos anjos, quando o
Céu fez, por uma Terra que deles se desaviera, o sacrifício supremo de si
próprio: Pax in excelsis; paz nas
alturas em que o homem, indo além de si mesmo, se faz Santo; não a paz em que o
homem, rendendo-se, organiza, explora e defende sua própria baixeza.
Em
Brasão, Portugal é o rosto com que a
Europa fita um Ocidente que, ao plenamente ser, justificará todo o passado de
miséria que a humanidade tiver atravessado; a missão de Portugal não poderá ser
outra senão a de resgatar o que a Europa fez e de a salvar a seus próprios
olhos; por isso o seu campo, o dos Castelos, é o que serve de base ao das
Quinas, o das Chagas de Cristo, este o campo próprio de Portugal: é expirando
na cruz, esgotando-se no seu sangue e na sua piedade, que Portugal poderá
salvar o mundo. No dos Castelos, porém, Portugal porá, como seu alicerce, o que
de mais fundamental a Europa poderá ter dado ao mundo: com Ulisses, a ideia de que o mito é mais importante do que a
realidade, de que o poder vir a ser é o substracto do que é, de que as coisas
morrem à medida que são; com Viriato,
a de que a verdadeira força propulsora da vida não é a inteligência, mas a
reminiscência, e de que o ponto criador não é a definição, mas o
pressentimento; com o Conde D. Henrique a
de que a acção, se Deus é o agente, se faz para além das intenções e das
possibilidades do herói, consistindo o heroísmo apenas em não se recusar o que
não se compreende; com D. Tareja,
juntamente com a da contemporaneidade do temporal e do eterno, a de que o dever
perante a obra consiste em a ela se dedicar com a bruta e natural certeza com
que a mãe amamenta a seu filho; com D.
Afonso Henriques, a de que, para se vencerem infiéis, só vale uma
indefinível arma, que, espinosianamente, tenha como um dos aspectos o da espada
e como outro o da bênção, como um, o do corpo, como outro, o do espírito; com D. Dinis, a de que a intuição poética
vale mais do que o plano; com o sétimo castelo, o que junta D. João e D.
Filipa, o que se afirma é que a História, ao ser, toma dois aspectos: o do
homem e o da obra, sendo as modificações de qualquer desses o reflexo das
modificações do outro; e ainda, que o milagre da concepção humana consiste em
que cada filho, sendo de seus pais, não tem ao mesmo tempo nada que ver com
eles: a cada nova geração reafirma o Espírito Santo a liberdade de criar. A
Europa em que Portugal assenta não é, felizmente, a Europa cartesiana.
Se
a força de alicerce de Portugal vem de ter afirmado a sua existência de uma
Europa que duas vezes se perdeu de si própria, primeiro na Idade Média grega,
depois na Idade Média Ocidental, a sua força de salvação virá de,
voluntariamente, ter incluído em seu brasão as chagas de Cristo, não
pintando-as apenas, mas consubstanciando-as em gente sua: primeiro em D.
Duarte, o mártir do dever; depois em D. Fernando, o mártir da grandeza de alma,
superior sempre a seu destino; e em D. Pedro, o mártir da fidelidade a uma
ideia claramente pensada e claramente sentida; e em D. João, o mártir de não
querer senão o todo, ou o seu nada; e, finalmente, em D. Sebastião, o mártir do
sonho de grandeza que está para além das circunstâncias históricas. Coroando os
campos, a santidade activa de Nuno Álvares, a sua pureza guerreira, o halo que
no céu gravam suas acções terrestres; e, numa afirmação final da energia que a
tudo subestá, o Grifo com sua cabeça de águia adivinhando o mundo como um
perfeito globo, ou melhor, obrigando o mundo a ser o globo que pensava; com uma
de suas asas rasgando o firmamento num sulco de vontade, com a outra das asas o
rasgando num sulco de poder.
Sobre
a base teórica de que a vontade de Deus desperta o sonho do homem e de que o
sonho do homem provoca o surgimento da obra, e afastando por aí, para explicar
a História, tudo o que sejam causas espirituais ou materiais limitadas ao
círculo humano, e pondo nitidamente, logo no primeiro poema, que a história que
vai contar, a da Possessio Maris, não
é a História de Portugal, mas apenas o seu interrompido prólogo, Pessoa dá o
que foi o encantamento máximo dos navegadores, o de transformar o abstracto em
concreto; o que foi basilar em sua actividade, a convicção de que só em Deus,
como último porto de repouso; a vontade de um Rei de carácter sacramental que,
faz, ao mais humilde dos homens, poder mais do que todos os medos do mundo; a
glória de ter mostrado que o mar é sempre o mesmo e que a sua posse nada
significa de vital; o sentimento de que o que vale na empresa de buscar é a
busca e não o encontro; o mérito de ter sido o corpo da vontade de Deus, de ter
sido o Tempo da Eternidade a revelar; o impulso que irá conduzir a história
para além dos que o lançaram; a consciência de se ter realizado, no mundo
físico, e sem nisso estar verdadeiramente empenhado, a mais alta façanha de que
os homens se podem orgulhar; o ter ensinado que toda a descoberta se faz apenas
quando se tem a coragem de passar além dos domínios da alegria e da dor; por
fim, em Última Nau e Prece, a certeza de que, embora tenha
vindo a noite e seja vil a alma, Deus ainda reserva para o seu povo Distância a
conquistar.
É
essa Distância como distante, é essa conquista como inconquistável o que, em O Encoberto, se anuncia pelos Símbolos, pelos Avisos, o último dos quais é o do próprio Fernando Pessoa, e se
afirma triunfantemente através do negrume dos Tempos. Portugal, completando a sua obra, dará ao mundo o seu
íntimo Império feito de anseios, de lonjuras, de Reinos ilocalizáveis em tempo
ou espaço, o seu reino de alma humana continuamente sendo e continuamente
ansiosa de mais ser, tendo-se inteiramente desprendido das ilusões de uma
afirmação puramente pessoal e de uma pessoal felicidade; o mar bate nas costas
do Império, mas, se o escutarmos, pára; decerto, porém, um dia, desistindo do
nos opormos ao mundo, não mais o quereremos escutar; então, através de todo o
nevoeiro, pelo próprio nevoeiro, terá surgido a Hora; o Encoberto, em milagre
supremo, se descobrirá.
Agostinho da Silva, Um Fernando Pessoa
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