terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Tormenta in Mensagem

"a noite é o fausto do mistério"- a noite é a pompa do desconhecido; é de noite que o desconhecido assume toda a sua grandeza (ou é mais terrível).. "o relâmpago, farol de Deus, um hausto brilha"- o relâmpago reluz por um instante (literalmente: pelo tempo de uma inalação rápida). "e o mar escuro estruge"- o mar estrondeia (faz um estrépito muito alto). Apesar da ilustração que escolhi, o poema é sobre uma tormenta simbólica: a agitação íntima de Portugal que, segundo Pessoa, aspira ser a nação do Quinto Império. E no negrume da ignorância do Seu desígnio, Deus indica-o por um breve instante (supostamente através do próprio F. Pessoa que seria, assim, o "farol de Deus"). Francisco Montez

Calma in Mensagem

Este estranho poema deve ser comparado ao intitulado "Ilhas Afortunadas" que versa o mesmo tema e foi escrito alguns dias mais tarde. É provável que o poema agora intitulado "Calma" tenha sido a primeira versão de "Ilhas Afortunadas" e tenha sido repescado para a última parte de Mensagem que foi preparada com um prazo muito curto e, destinando-se a um concurso que impunha um número mínimo de páginas, obrigava o poeta a incluir mais material do que o que, de outra maneira, poderia ter incluido. Este poema representa uma espécie de tempo de paragem para reflexão, o que talvez tenha justificado o seu nome. "rasgões no espaço que deem para outro lado"- este conceito dos mundos paralelos ou túneis para outros mundos, hoje lugar comum nos contos de ficção científica e parcialmente alvo de estudos pelos físicos teóricos, é altamente surpreendente para a época e suscita a questão de se Pessoa o terá imaginado ou se terá tido notícia dele através de revistas de ficção científica americanas. Francisco Montez

Noite in Mensagem

O poema Noite expressa o desejo de mudança e à acção dos portugueses na construção de um Império futuro, o Quinto Império, mas não um império material, mas sim naquilo que é espiritual e imaterial. A vontade de reabilitar a pátria leva o sujeito poético a relembrar os heróis que permanecem na memória colectiva e que são exemplos do que permitirá reestabelecer a pátria. Neste caso são referidos os irmãos Corte-Real, que intervieram na exploração do Canadá, que são alusivos a um grupo de pessoas que sonhou e superou as dificuldades, adquirindo assim um valor simbólico e espiritual após a sua morte através da sua imortalização devido à sua descoberta. Além da estrutura trinitária da Mensagem, que representa os momentos do herói e o percurso da obra heróica, também este poema d’ “Os Tempos” se associa ao número três visto que se encontra dividido em três momentos e se refere a três irmãos, o que confere ao mesmo número um valor simbólico: representa, assim, a perfeição e a totalidade. O primeiro momento corresponde às duas primeiras estrofes e diz respeito ao passado enquanto tempo da descoberta e da superação refirindo-se, então, aos heróis dos Descobrimentos (“na fé e na lei/ Da descoberta, ir em procura”). O mar tem uma configuração simbólica na medida em que é o local onde os portugueses superaram os limites representando a conquista humana em relação ao conhecimento. Já a terceira e quarta estrofes representam, após a morte concreta dos heróis, o presente, isto é, a decadência do Império (“Cumpriu-se o Mar e o Império se desfez” – in “O Infante”) e a vontade de reabilitação da morte dos dois irmãos, da pátria, concretizada pelo terceiro irmão (“olhos rasos de ânsia/ Fitando a proibida azul distância”). O “Poder” e o “Renome” são a alusão simbólica a dois referentes históricos, os irmãos Corte-Real, que estão aqui desmaterializados para vencer o tempo (natureza do mito). A estrofe final é um apelo a Deus, enquanto entidade abstracta, pelo ressurgimento do Império (“A Deus as mãos alçamos”). O sujeito poético termina com “Mas Deus não dá licença que partamos, determinando, assim, a necessidade de criação de um Império Espiritual e revelando o desejo de um renascimento: está na altura de Portugal se reabilitar enquanto nação, o que se compagina com o louvor a “Deus” (“A Deus as mãos alçamos”). Hugo João

António Vieira in Mensagem

O Poema “António Vieira” faz parte da Terceira parte da mensagem e do 2º “capitulo”/secção desta terceira parte, Neste poema, Fernando Pessoa qualifica António Vieira como o maior orador do seu tempo, e como utilizador notável da língua portuguesa como se pode ver no verso “ imperador da língua portuguesa”. Quando Pessoa diz “surge, prenúncio claro do luar, El-rei D.Sebastião” refere-se aos escritos do Padre António Vieira referente às esperanças de Portugal que um grande rei conduziria a um futuro Quinto Império Mundo. Baseia-se também na lenda que anunciava o regresso do rei D.Sebastião. Pessoa tem um momento em que afirma “foi-nos um céu também”, ou seja, designa António Vieira como um céu estrelado dos portugueses, grandioso, trazendo assim, grandiosidade à Língua Portuguesa. No verso “Mas não, não é luar: é luz do etéreo”, o poeta diz que não é o luar, ou seja, o final do dia, pois a luz do etéreo é a luz celesta, a luz do início de um novo dia, sendo isto como que uma metáfora para o início de um novo império, o Quinto Império. Hugo João

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Mariano Deidda legge Pessoa . ( inedito)

O Provincianismo Português

O amor ao progresso e ao moderno é a outra forma do mesmo característico provinciano. Os civilizados criam o progresso, criam a moda, criam a modernidade; por isso lhes não atribuem importância de maior. Ninguém atribui importância ao que produz. Quem não produz é que admira a produção. Diga-se incidentalmente: é esta uma das explicações do socialismo. Se alguma tendência têm os criadores de civilização, é a de não repararem bem na importância do que criam. O Infante D. Henrique, com ser o mais sistemático de todos os criadores de civilização, não viu contudo que prodígio estava criando – toda a civilização transoceânica moderna, embora com consequências abomináveis, como a existência dos Estados Unidos. Dante adorava Vergílio como um exemplar e uma estrela, nunca sonharia em comparar-se com ele; nada há, todavia, mais certo que o ser a “Divina Comédia” superior à “Eneida”. O provinciano, porém, pasma do que não fez, precisamente porque o não fez; e orgulha-se de sentir esse pasmo. Se assim não sentisse, não seria provinciano.
É na incapacidade de ironia que reside io traço mais fundo do provincianismo mensta. Por ironia entende-se, não o dizer piadas, como se crê nos cafés e nas redacções, mas o dizer uma coisa para dizer o contrário. A essência da ironia consiste em não se poder descobrir o segundo sentido do texto por nenhuma palavra dele, deduzindo-se porém esse segundo sentido do facto de ser imporssível dever o texto dizer aquilo que diz. Assim, o maior de todos os ironistas, Swift, redigiu, durante uma das fomes na Irlanda, e como sátira brutal à Inglaterra, um breve escrito propondo uma solução para essa fome. Propõe que os irlandeses comam os próprios filhos. Examina com grande seriedade o problema, e expõe com clareza e ciência a utilidade das crianças de menos de sete anos como bom alimento. Nenhuma palavra nessas páginas assombrosas quebra a absoluta gravidade da exposição; ninguém poderia concluir, do texto, que a proposta não fosse feita com absoluta seriedade, se não fosse a circunstância, exterior ao texto, de que uma proposta dessas não poderia ser feita a sério.
A ironia é isto. Para a sua realização exige-se um domínio absoluto da expressão, produto de uma cultura intensa; e aquilo a que os ingleses chamam detachment – o poder de afastar-se de si mesmo, de dividir-se em dois, produto daquele “desenvolvimento da largueza de consciência” em que, segundo o historiador alemão Lamprecht, reside a essência da civilização. Para a sua realização exige-se, em outras palavras, o não se ser provinciano.
O exemplo mais flagrante do provincianismo português é Eça de Queirós. É o exemplo mais flagrante porque foi o escritor português que mais se preocupou (como todos os provincianos) em ser civilizado. As suas tentativas de ironia aterram não só pelo grau de falência, senão também pela inconsciência dela. Neste capítulo, “A Relíquia”, Paio Pires a falara francês, é um documento doloroso. As próprias páginas sobre Pacheco, quase civilizadas, são estragadas por vários lapsos verbais, quebradores da imperturbabilidade que a ironia exige, e arruinadas por inteiro na introdução do desgraçado episódio da viúva de Pacheco.
Compare-se Eça de Queirós, não direi já com Swift, mas, por exemplo, com Anatole France. Ver-se-á a diferença entre um jornalista, embora brilhante, de província, e um verdadeiro, se bem que limitado, artista. Para o provincianismo há só uma terapêutica: é o saber que ele existe. O provincianismo vive da inconsciência; de nos supormos civilizados quando o não somos, de nos supormos civilizados precisamente pelas qualidades por que o não somos. O princípio da cura está na consciência da doença, o da verdade no conhecimento do erro. Quando um doido sabe que está doido, já não está doido. Estamos perto de acordar, disse Novalis, quando sonhamos que sonhamos.


Fernando Pessoa, in 'Portugal entre Passado e Futuro'

REFLEXÕES SOBRE O PROVINCIANISMO (Reflections on Provincialism)

Não é de admirar, de facto, que a grande maioria da humanidade civilizada seja mentalmente provinciana, porque o urbanismo mental é mais difícil de se estabelecer que o geográfico (geodético). O que porém será de admirar é se formos encontrar os sintomas de provincianismo entre a minoria, entre o escol e o escol do escol.
Se, assim, em grande número de nações há um provincianismo geral do escol, sucede que, naquelas em que tal se não dá assim, continua a dar-se, de outro modo. Aqui é o escol inteiro, em suas três camadas, ou duas, que manifesta o provincianismo. Ali é a maioria do escol, por ter perdido a capacidade de absorver as ideias emanadas do escol menor.
Nos tempos da Renascença, como, precedentemente, nos da Idade Média, uma doutrina superior não tardava em ser conhecida, e, onde não fosse adoptada, pelo menos rejeitada criticamente. Agora, uma doutrina superior dificilmente passa para as camadas cultas, e, quando ali chega, chega como o equusdo epigrama francês — mudou bastante no caminho.
Repare-se no que, em todos os povos do mundo, se passa em matéria de doutrina política. A política prática continua a correr nas mesmas calhas, ou em calhas quase as mesmas. No entanto fervilham doutrinas críticas da política, com que ninguém na prática se importa. Tudo quanto se tem feito recentemente de alterações nas constituições ou leis fundamentais, são expedientes da política acidental, movimentos do oportunismo — nunca a aplicação de princípios críticos, de doutrinas sociológicas.
s.d.
Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.

  - 6.

NOTAS PARA A RECORDAÇÃO DO MEU MESTRE CAEIRO (algumas delas)

Conheci o meu mestre Caeiro em circunstâncias excepcionais — como todas as circunstâncias da vida, e sobretudo as que, não sendo nada em si mesmas, hão-de vir a ser tudo nos resultados.
Deixei em quase três quartos o meu curso escocês de engenharia naval; parti numa viagem ao Oriente; no regresso, desembarcando em Marselha, e sentindo um grande tédio de seguir, vim por terra até Lisboa. Um primo meu levou-me um dia de passeio ao Ribatejo; conhecia um primo de Caeiro, e tinha com ele negócios; encontrei-me com o que havia de ser meu mestre em casa desse primo. Não há mais que contar, porque isto é pequeno, como toda a fecundação.
Vejo ainda, com claridade da alma, que as lágrimas da lembrança não empanam, porque a visão não é externa... Vejo-o diante de mim, vê-lo-ei talvez eternamente como primeiro o vi. Primeiro, os olhos azuis de criança que não têm medo; depois, os malares já um pouco salientes, a cor um pouco pálida, e o estranho ar grego, que vinha de dentro e era uma calma, e não de fora, porque não era expressão nem feições. O cabelo, quase abundante, era louro, mas, se faltava luz, acastanhava-se. A estatura era média, tendendo para mais alta, mas curvada, sem ombros altos. O gesto era branco, o sorriso era como era, a voz era igual, lançada num tom de quem não procura senão dizer o que está dizendo-nem alta, nem baixa, clara, livre de intenções, de hesitações, de timidezas. O olhar azul não sabia deixar de fitar. Se a nossa observação estranhava qualquer coisa, encontrava-a: a testa, sem ser alta, era poderosamente branca. Repito: era pela sua brancura, que parecia maior que a da cara pálida, que tinha majestade. As mãos um pouco delgadas, mas não muito; a palma era larga. A expressão da boca, a última coisa em que se reparava — como se falar fosse, para este homem, menos que existir — era a de um sorriso como o que se atribui em verso às coisas inanimadas belas, só porque nos agradam — flores, campos largos, águas com sol — um sorriso de existir, e não de nos falar.
Meu mestre, meu mestre, perdido tão cedo! Revejo-o na sombra que sou em mim, na memória que conservo do que sou de morto...
Foi durante a nossa primeira conversa. Como foi não sei, e ele disse: «Está aqui um rapaz Ricardo Reis que há-de gostar de conhecer: ele é muito diferente de si». E depois acrescentou, «tudo é diferente de nós, e por isso é que tudo existe».
Esta frase, dita como se fosse um axioma da terra, seduziu-me com um abalo, como o de todas as primeiras posses, que me entrou nos alicerces da alma. Mas, ao contrário da sedução material, o efeito em mim foi de receber de repente, em todas as minhas sensações, uma virgindade que não tinha tido.
*
Referindo-me, uma vez, ao conceito directo das coisas, que caracteriza a sensibilidade de Caeiro, citei-lhe, com perversidade amiga, que Wordsworth designa um insensível pela expressão:
A primrose by the river's brim
A yellow primrose was to him
 And it was nothing more.
E traduzi (omitindo a tradução exacta de «primrose», pois não sei nomes de flores nem de plantas): «Uma flor à margem do rio para ele era uma flor amarela, e não era mais nada».
O meu mestre Caeiro riu. «Esse simples via bem: uma flor amarela não é realmente senão uma flor amarela».
Mas, de repente, pensou.
«Há uma diferença», acrescentou. «Depende se se considera a flor amarela como uma das várias flores amarelas, ou como aquela flor amarela só».
E depois disse:
«O que esse seu poeta inglês queria dizer é que para o tal homem essa flor amarela era uma experiência vulgar, ou coisa conhecida. Ora isso é que não está bem. Toda a coisa que vemos, devemos vê-la sempre pela primeira vez, porque realmente é a primeira vez que a vemos. E então cada flor amarela é uma nova flor amarela, ainda que seja o que se chama a mesma de ontem. A gente não é já o mesmo nem a flor a mesma. O próprio amarelo não pode ser já o mesmo. É pena a gente não ter exactamente os olhos para saber isso, porque então éramos todos felizes».
*
O meu mestre Caeiro não era um pagão: era o paganismo. O Ricardo Reis é um pagão, o António Mora é um pagão, eu sou um pagão; o próprio Fernando Pessoa seria um pagão, se não fosse um novelo embrulhado para o lado de dentro. Mas o Ricardo Reis é um pagão por carácter, o António Mora é um pagão por inteligência, eu sou um pagão por revolta, isto é, por temperamento. Em Caeiro não havia explicação para o paganismo; havia consubstanciação.
Vou definir isto da maneira em que se definem as coisas indefiníveis — pela cobardia do exemplo. Uma das coisas que mais nitidamente nos sacodem na comparação de nós com os gregos é a ausência de conceito de infinito, a repugnância de infinito, entre os gregos. Ora o meu mestre Caeiro tinha lá mesmo esse mesmo conceito. Vou contar, creio que com grande exactidão, a conversa assombrosa em que mo revelou.
Referia-me ele, aliás desenvolvendo o que diz num dos poemas de «O Guardador de Rebanhos», que não sei quem lhe tinha chamado em tempos «poeta materialista». Sem achar a frase justa, porque o meu mestre Caeiro não é definível com qualquer frase justa, disse, contudo, que não era absurda de todo a atribuição. E expliquei-lhe, mais ou menos bem, o que é o materialismo clássico. Caeiro ouviu-me com uma atenção de cara dolorosa, e depois disse-me bruscamente:
«Mas isso o que é é muito estúpido. Isso é uma coisa de padres sem religião, e portanto sem desculpa nenhuma».
Fiquei atónito, e apontei-lhe várias semelhanças entre o materialismo e a doutrina dele, salva a poesia desta última. Caeiro protestou.
«Mas isso a que V. chama poesia é que é tudo. Nem é poesia: é ver. Essa gente materialista é cega. V. diz que eles dizem que o espaço é infinito. Onde é que eles viram isso no espaço?»
E eu, desnorteado. «Mas V. não concebe o espaço como infinito? Você não pode conceber o espaço como infinito?»
«Não concebo nada como infinito. Como é que eu hei-de conceber qualquer coisa como infinito?»
«Homem», disse eu, «suponha um espaço. Para além desse espaço há mais espaço, para além desse mais, e depois mais, e mais, e mais... Não acaba...»
«Porquê?» disse o meu mestre Caeiro.
Fiquei num terramoto mental. «Suponha que acaba», gritei. «O que há depois?»
«Se acaba, depois não há nada», respondeu.
Este género de argumentação, cumulativamente infantil e feminina, e portanto irresponsável, atou-me o cérebro durante uns momentos.
«Mas V. concebe isso?» deixei cair por fim.
«Se concebo o quê? Uma coisa ter limites? Pudera! O que não tem limites não existe. Existir é haver outra coisa qualquer e portanto cada coisa ser limitada. O que é que custa conceber que uma coisa é uma coisa, e não está sempre a ser uma outra coisa que está mais adiante?»
Nessa altura senti carnalmente que estava discutindo, não com outro homem, mas com outro universo. Fiz uma última tentativa, um desvio que me obriguei a sentir legítimo.
«Olhe, Caeiro... Considere os números... Onde é que acabam os números? Tomemos qualquer número — 34, por exemplo. Para além dele temos 35, 36, 37, 38, e assim sem poder parar. Não há número grande que não haja um número maior. . .»
«Mas isso são só números», protestou o meu mestre Caeiro.
E depois acrescentou, olhando-me com uma formidável infância:
«O que é o 34 na realidade?»
*
Há frases repentinas, profundas porque vêm do profundo, que definem um homem, ou, antes, com que um homem se define, sem definição. Não me esquece aquela em que Ricardo Reis uma vez se me definiu. Falava-se de mentir, e ele disse: «Abomino a mentira, porque é uma inexactidão». Todo o Ricardo Reis — passado, presente e futuro — está nisto.
O meu mestre Caeiro, como não dizia senão o que era, pode ser definido por qualquer frase sua, escrita ou falada, sobretudo depois do período que começa do meio em diante de «O Guardador de Rebanhos». Mas, entre tantas frases que escreveu e se imprimem, entre tantas que me disse o relato ou não relato, a que o contém com maior simplicidade é aquela que uma vez me disse em Lisboa. Falava-se de não sei quê que tinha que ver com as relações de cada qual consigo mesmo. E eu perguntei de repente ao meu mestre Caeiro, «está contente consigo?» E ele respondeu: «Não: estou contente». Era como a voz da Terra, que é tudo e ninguém.
*
Nunca vi triste o meu mestre Caeiro. Não sei se estava triste quando morreu, ou nos dias antes. Seria possível sabê-lo, mas a verdade é que nunca ousei perguntar aos que assistiram à morte qualquer coisa da morte ou de como ele a teve.
Em todo o caso, foi uma das angústias da minha vida — das angústias reais em meio de tantas que têm sido fictícias — que Caeiro morresse sem eu estar ao pé dele. Isto é estúpido mas humano, e é assim.
Eu estava em Inglaterra. O próprio Ricardo Reis não estava em Lisboa; estava de volta no Brasil. Estava o Fernando Pessoa, mas é como se não estivesse. O Fernando Pessoa sente as coisas mas não se mexe, nem mesmo por dentro.
Nada me consola de não ter estado em Lisboa nesse dia, a não ser aquela consolação que pensar no meu mestre Caeiro espontaneamente me dá. Ninguém é inconsolável ao pé da memória de Caeiro, ou dos seus versos; e a própria ideia do nada — a mais pavorosa de todas se se pensa com a sensibilidade — tem, na obra e na recordação do meu mestre querido, qualquer coisa de luminoso e de alto, como o sol sobre as neves dos píncaros inatingíveis.
1931
Textos de Crítica e de Intervenção . Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1980.

 - 267.