terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Tormenta in Mensagem

"a noite é o fausto do mistério"- a noite é a pompa do desconhecido; é de noite que o desconhecido assume toda a sua grandeza (ou é mais terrível).. "o relâmpago, farol de Deus, um hausto brilha"- o relâmpago reluz por um instante (literalmente: pelo tempo de uma inalação rápida). "e o mar escuro estruge"- o mar estrondeia (faz um estrépito muito alto). Apesar da ilustração que escolhi, o poema é sobre uma tormenta simbólica: a agitação íntima de Portugal que, segundo Pessoa, aspira ser a nação do Quinto Império. E no negrume da ignorância do Seu desígnio, Deus indica-o por um breve instante (supostamente através do próprio F. Pessoa que seria, assim, o "farol de Deus"). Francisco Montez

Calma in Mensagem

Este estranho poema deve ser comparado ao intitulado "Ilhas Afortunadas" que versa o mesmo tema e foi escrito alguns dias mais tarde. É provável que o poema agora intitulado "Calma" tenha sido a primeira versão de "Ilhas Afortunadas" e tenha sido repescado para a última parte de Mensagem que foi preparada com um prazo muito curto e, destinando-se a um concurso que impunha um número mínimo de páginas, obrigava o poeta a incluir mais material do que o que, de outra maneira, poderia ter incluido. Este poema representa uma espécie de tempo de paragem para reflexão, o que talvez tenha justificado o seu nome. "rasgões no espaço que deem para outro lado"- este conceito dos mundos paralelos ou túneis para outros mundos, hoje lugar comum nos contos de ficção científica e parcialmente alvo de estudos pelos físicos teóricos, é altamente surpreendente para a época e suscita a questão de se Pessoa o terá imaginado ou se terá tido notícia dele através de revistas de ficção científica americanas. Francisco Montez

Noite in Mensagem

O poema Noite expressa o desejo de mudança e à acção dos portugueses na construção de um Império futuro, o Quinto Império, mas não um império material, mas sim naquilo que é espiritual e imaterial. A vontade de reabilitar a pátria leva o sujeito poético a relembrar os heróis que permanecem na memória colectiva e que são exemplos do que permitirá reestabelecer a pátria. Neste caso são referidos os irmãos Corte-Real, que intervieram na exploração do Canadá, que são alusivos a um grupo de pessoas que sonhou e superou as dificuldades, adquirindo assim um valor simbólico e espiritual após a sua morte através da sua imortalização devido à sua descoberta. Além da estrutura trinitária da Mensagem, que representa os momentos do herói e o percurso da obra heróica, também este poema d’ “Os Tempos” se associa ao número três visto que se encontra dividido em três momentos e se refere a três irmãos, o que confere ao mesmo número um valor simbólico: representa, assim, a perfeição e a totalidade. O primeiro momento corresponde às duas primeiras estrofes e diz respeito ao passado enquanto tempo da descoberta e da superação refirindo-se, então, aos heróis dos Descobrimentos (“na fé e na lei/ Da descoberta, ir em procura”). O mar tem uma configuração simbólica na medida em que é o local onde os portugueses superaram os limites representando a conquista humana em relação ao conhecimento. Já a terceira e quarta estrofes representam, após a morte concreta dos heróis, o presente, isto é, a decadência do Império (“Cumpriu-se o Mar e o Império se desfez” – in “O Infante”) e a vontade de reabilitação da morte dos dois irmãos, da pátria, concretizada pelo terceiro irmão (“olhos rasos de ânsia/ Fitando a proibida azul distância”). O “Poder” e o “Renome” são a alusão simbólica a dois referentes históricos, os irmãos Corte-Real, que estão aqui desmaterializados para vencer o tempo (natureza do mito). A estrofe final é um apelo a Deus, enquanto entidade abstracta, pelo ressurgimento do Império (“A Deus as mãos alçamos”). O sujeito poético termina com “Mas Deus não dá licença que partamos, determinando, assim, a necessidade de criação de um Império Espiritual e revelando o desejo de um renascimento: está na altura de Portugal se reabilitar enquanto nação, o que se compagina com o louvor a “Deus” (“A Deus as mãos alçamos”). Hugo João

António Vieira in Mensagem

O Poema “António Vieira” faz parte da Terceira parte da mensagem e do 2º “capitulo”/secção desta terceira parte, Neste poema, Fernando Pessoa qualifica António Vieira como o maior orador do seu tempo, e como utilizador notável da língua portuguesa como se pode ver no verso “ imperador da língua portuguesa”. Quando Pessoa diz “surge, prenúncio claro do luar, El-rei D.Sebastião” refere-se aos escritos do Padre António Vieira referente às esperanças de Portugal que um grande rei conduziria a um futuro Quinto Império Mundo. Baseia-se também na lenda que anunciava o regresso do rei D.Sebastião. Pessoa tem um momento em que afirma “foi-nos um céu também”, ou seja, designa António Vieira como um céu estrelado dos portugueses, grandioso, trazendo assim, grandiosidade à Língua Portuguesa. No verso “Mas não, não é luar: é luz do etéreo”, o poeta diz que não é o luar, ou seja, o final do dia, pois a luz do etéreo é a luz celesta, a luz do início de um novo dia, sendo isto como que uma metáfora para o início de um novo império, o Quinto Império. Hugo João

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Mariano Deidda legge Pessoa . ( inedito)

O Provincianismo Português

O amor ao progresso e ao moderno é a outra forma do mesmo característico provinciano. Os civilizados criam o progresso, criam a moda, criam a modernidade; por isso lhes não atribuem importância de maior. Ninguém atribui importância ao que produz. Quem não produz é que admira a produção. Diga-se incidentalmente: é esta uma das explicações do socialismo. Se alguma tendência têm os criadores de civilização, é a de não repararem bem na importância do que criam. O Infante D. Henrique, com ser o mais sistemático de todos os criadores de civilização, não viu contudo que prodígio estava criando – toda a civilização transoceânica moderna, embora com consequências abomináveis, como a existência dos Estados Unidos. Dante adorava Vergílio como um exemplar e uma estrela, nunca sonharia em comparar-se com ele; nada há, todavia, mais certo que o ser a “Divina Comédia” superior à “Eneida”. O provinciano, porém, pasma do que não fez, precisamente porque o não fez; e orgulha-se de sentir esse pasmo. Se assim não sentisse, não seria provinciano.
É na incapacidade de ironia que reside io traço mais fundo do provincianismo mensta. Por ironia entende-se, não o dizer piadas, como se crê nos cafés e nas redacções, mas o dizer uma coisa para dizer o contrário. A essência da ironia consiste em não se poder descobrir o segundo sentido do texto por nenhuma palavra dele, deduzindo-se porém esse segundo sentido do facto de ser imporssível dever o texto dizer aquilo que diz. Assim, o maior de todos os ironistas, Swift, redigiu, durante uma das fomes na Irlanda, e como sátira brutal à Inglaterra, um breve escrito propondo uma solução para essa fome. Propõe que os irlandeses comam os próprios filhos. Examina com grande seriedade o problema, e expõe com clareza e ciência a utilidade das crianças de menos de sete anos como bom alimento. Nenhuma palavra nessas páginas assombrosas quebra a absoluta gravidade da exposição; ninguém poderia concluir, do texto, que a proposta não fosse feita com absoluta seriedade, se não fosse a circunstância, exterior ao texto, de que uma proposta dessas não poderia ser feita a sério.
A ironia é isto. Para a sua realização exige-se um domínio absoluto da expressão, produto de uma cultura intensa; e aquilo a que os ingleses chamam detachment – o poder de afastar-se de si mesmo, de dividir-se em dois, produto daquele “desenvolvimento da largueza de consciência” em que, segundo o historiador alemão Lamprecht, reside a essência da civilização. Para a sua realização exige-se, em outras palavras, o não se ser provinciano.
O exemplo mais flagrante do provincianismo português é Eça de Queirós. É o exemplo mais flagrante porque foi o escritor português que mais se preocupou (como todos os provincianos) em ser civilizado. As suas tentativas de ironia aterram não só pelo grau de falência, senão também pela inconsciência dela. Neste capítulo, “A Relíquia”, Paio Pires a falara francês, é um documento doloroso. As próprias páginas sobre Pacheco, quase civilizadas, são estragadas por vários lapsos verbais, quebradores da imperturbabilidade que a ironia exige, e arruinadas por inteiro na introdução do desgraçado episódio da viúva de Pacheco.
Compare-se Eça de Queirós, não direi já com Swift, mas, por exemplo, com Anatole France. Ver-se-á a diferença entre um jornalista, embora brilhante, de província, e um verdadeiro, se bem que limitado, artista. Para o provincianismo há só uma terapêutica: é o saber que ele existe. O provincianismo vive da inconsciência; de nos supormos civilizados quando o não somos, de nos supormos civilizados precisamente pelas qualidades por que o não somos. O princípio da cura está na consciência da doença, o da verdade no conhecimento do erro. Quando um doido sabe que está doido, já não está doido. Estamos perto de acordar, disse Novalis, quando sonhamos que sonhamos.


Fernando Pessoa, in 'Portugal entre Passado e Futuro'

REFLEXÕES SOBRE O PROVINCIANISMO (Reflections on Provincialism)

Não é de admirar, de facto, que a grande maioria da humanidade civilizada seja mentalmente provinciana, porque o urbanismo mental é mais difícil de se estabelecer que o geográfico (geodético). O que porém será de admirar é se formos encontrar os sintomas de provincianismo entre a minoria, entre o escol e o escol do escol.
Se, assim, em grande número de nações há um provincianismo geral do escol, sucede que, naquelas em que tal se não dá assim, continua a dar-se, de outro modo. Aqui é o escol inteiro, em suas três camadas, ou duas, que manifesta o provincianismo. Ali é a maioria do escol, por ter perdido a capacidade de absorver as ideias emanadas do escol menor.
Nos tempos da Renascença, como, precedentemente, nos da Idade Média, uma doutrina superior não tardava em ser conhecida, e, onde não fosse adoptada, pelo menos rejeitada criticamente. Agora, uma doutrina superior dificilmente passa para as camadas cultas, e, quando ali chega, chega como o equusdo epigrama francês — mudou bastante no caminho.
Repare-se no que, em todos os povos do mundo, se passa em matéria de doutrina política. A política prática continua a correr nas mesmas calhas, ou em calhas quase as mesmas. No entanto fervilham doutrinas críticas da política, com que ninguém na prática se importa. Tudo quanto se tem feito recentemente de alterações nas constituições ou leis fundamentais, são expedientes da política acidental, movimentos do oportunismo — nunca a aplicação de princípios críticos, de doutrinas sociológicas.
s.d.
Ultimatum e Páginas de Sociologia Política. Fernando Pessoa. (Recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão. Introdução e organização de Joel Serrão.) Lisboa: Ática, 1980.

  - 6.

NOTAS PARA A RECORDAÇÃO DO MEU MESTRE CAEIRO (algumas delas)

Conheci o meu mestre Caeiro em circunstâncias excepcionais — como todas as circunstâncias da vida, e sobretudo as que, não sendo nada em si mesmas, hão-de vir a ser tudo nos resultados.
Deixei em quase três quartos o meu curso escocês de engenharia naval; parti numa viagem ao Oriente; no regresso, desembarcando em Marselha, e sentindo um grande tédio de seguir, vim por terra até Lisboa. Um primo meu levou-me um dia de passeio ao Ribatejo; conhecia um primo de Caeiro, e tinha com ele negócios; encontrei-me com o que havia de ser meu mestre em casa desse primo. Não há mais que contar, porque isto é pequeno, como toda a fecundação.
Vejo ainda, com claridade da alma, que as lágrimas da lembrança não empanam, porque a visão não é externa... Vejo-o diante de mim, vê-lo-ei talvez eternamente como primeiro o vi. Primeiro, os olhos azuis de criança que não têm medo; depois, os malares já um pouco salientes, a cor um pouco pálida, e o estranho ar grego, que vinha de dentro e era uma calma, e não de fora, porque não era expressão nem feições. O cabelo, quase abundante, era louro, mas, se faltava luz, acastanhava-se. A estatura era média, tendendo para mais alta, mas curvada, sem ombros altos. O gesto era branco, o sorriso era como era, a voz era igual, lançada num tom de quem não procura senão dizer o que está dizendo-nem alta, nem baixa, clara, livre de intenções, de hesitações, de timidezas. O olhar azul não sabia deixar de fitar. Se a nossa observação estranhava qualquer coisa, encontrava-a: a testa, sem ser alta, era poderosamente branca. Repito: era pela sua brancura, que parecia maior que a da cara pálida, que tinha majestade. As mãos um pouco delgadas, mas não muito; a palma era larga. A expressão da boca, a última coisa em que se reparava — como se falar fosse, para este homem, menos que existir — era a de um sorriso como o que se atribui em verso às coisas inanimadas belas, só porque nos agradam — flores, campos largos, águas com sol — um sorriso de existir, e não de nos falar.
Meu mestre, meu mestre, perdido tão cedo! Revejo-o na sombra que sou em mim, na memória que conservo do que sou de morto...
Foi durante a nossa primeira conversa. Como foi não sei, e ele disse: «Está aqui um rapaz Ricardo Reis que há-de gostar de conhecer: ele é muito diferente de si». E depois acrescentou, «tudo é diferente de nós, e por isso é que tudo existe».
Esta frase, dita como se fosse um axioma da terra, seduziu-me com um abalo, como o de todas as primeiras posses, que me entrou nos alicerces da alma. Mas, ao contrário da sedução material, o efeito em mim foi de receber de repente, em todas as minhas sensações, uma virgindade que não tinha tido.
*
Referindo-me, uma vez, ao conceito directo das coisas, que caracteriza a sensibilidade de Caeiro, citei-lhe, com perversidade amiga, que Wordsworth designa um insensível pela expressão:
A primrose by the river's brim
A yellow primrose was to him
 And it was nothing more.
E traduzi (omitindo a tradução exacta de «primrose», pois não sei nomes de flores nem de plantas): «Uma flor à margem do rio para ele era uma flor amarela, e não era mais nada».
O meu mestre Caeiro riu. «Esse simples via bem: uma flor amarela não é realmente senão uma flor amarela».
Mas, de repente, pensou.
«Há uma diferença», acrescentou. «Depende se se considera a flor amarela como uma das várias flores amarelas, ou como aquela flor amarela só».
E depois disse:
«O que esse seu poeta inglês queria dizer é que para o tal homem essa flor amarela era uma experiência vulgar, ou coisa conhecida. Ora isso é que não está bem. Toda a coisa que vemos, devemos vê-la sempre pela primeira vez, porque realmente é a primeira vez que a vemos. E então cada flor amarela é uma nova flor amarela, ainda que seja o que se chama a mesma de ontem. A gente não é já o mesmo nem a flor a mesma. O próprio amarelo não pode ser já o mesmo. É pena a gente não ter exactamente os olhos para saber isso, porque então éramos todos felizes».
*
O meu mestre Caeiro não era um pagão: era o paganismo. O Ricardo Reis é um pagão, o António Mora é um pagão, eu sou um pagão; o próprio Fernando Pessoa seria um pagão, se não fosse um novelo embrulhado para o lado de dentro. Mas o Ricardo Reis é um pagão por carácter, o António Mora é um pagão por inteligência, eu sou um pagão por revolta, isto é, por temperamento. Em Caeiro não havia explicação para o paganismo; havia consubstanciação.
Vou definir isto da maneira em que se definem as coisas indefiníveis — pela cobardia do exemplo. Uma das coisas que mais nitidamente nos sacodem na comparação de nós com os gregos é a ausência de conceito de infinito, a repugnância de infinito, entre os gregos. Ora o meu mestre Caeiro tinha lá mesmo esse mesmo conceito. Vou contar, creio que com grande exactidão, a conversa assombrosa em que mo revelou.
Referia-me ele, aliás desenvolvendo o que diz num dos poemas de «O Guardador de Rebanhos», que não sei quem lhe tinha chamado em tempos «poeta materialista». Sem achar a frase justa, porque o meu mestre Caeiro não é definível com qualquer frase justa, disse, contudo, que não era absurda de todo a atribuição. E expliquei-lhe, mais ou menos bem, o que é o materialismo clássico. Caeiro ouviu-me com uma atenção de cara dolorosa, e depois disse-me bruscamente:
«Mas isso o que é é muito estúpido. Isso é uma coisa de padres sem religião, e portanto sem desculpa nenhuma».
Fiquei atónito, e apontei-lhe várias semelhanças entre o materialismo e a doutrina dele, salva a poesia desta última. Caeiro protestou.
«Mas isso a que V. chama poesia é que é tudo. Nem é poesia: é ver. Essa gente materialista é cega. V. diz que eles dizem que o espaço é infinito. Onde é que eles viram isso no espaço?»
E eu, desnorteado. «Mas V. não concebe o espaço como infinito? Você não pode conceber o espaço como infinito?»
«Não concebo nada como infinito. Como é que eu hei-de conceber qualquer coisa como infinito?»
«Homem», disse eu, «suponha um espaço. Para além desse espaço há mais espaço, para além desse mais, e depois mais, e mais, e mais... Não acaba...»
«Porquê?» disse o meu mestre Caeiro.
Fiquei num terramoto mental. «Suponha que acaba», gritei. «O que há depois?»
«Se acaba, depois não há nada», respondeu.
Este género de argumentação, cumulativamente infantil e feminina, e portanto irresponsável, atou-me o cérebro durante uns momentos.
«Mas V. concebe isso?» deixei cair por fim.
«Se concebo o quê? Uma coisa ter limites? Pudera! O que não tem limites não existe. Existir é haver outra coisa qualquer e portanto cada coisa ser limitada. O que é que custa conceber que uma coisa é uma coisa, e não está sempre a ser uma outra coisa que está mais adiante?»
Nessa altura senti carnalmente que estava discutindo, não com outro homem, mas com outro universo. Fiz uma última tentativa, um desvio que me obriguei a sentir legítimo.
«Olhe, Caeiro... Considere os números... Onde é que acabam os números? Tomemos qualquer número — 34, por exemplo. Para além dele temos 35, 36, 37, 38, e assim sem poder parar. Não há número grande que não haja um número maior. . .»
«Mas isso são só números», protestou o meu mestre Caeiro.
E depois acrescentou, olhando-me com uma formidável infância:
«O que é o 34 na realidade?»
*
Há frases repentinas, profundas porque vêm do profundo, que definem um homem, ou, antes, com que um homem se define, sem definição. Não me esquece aquela em que Ricardo Reis uma vez se me definiu. Falava-se de mentir, e ele disse: «Abomino a mentira, porque é uma inexactidão». Todo o Ricardo Reis — passado, presente e futuro — está nisto.
O meu mestre Caeiro, como não dizia senão o que era, pode ser definido por qualquer frase sua, escrita ou falada, sobretudo depois do período que começa do meio em diante de «O Guardador de Rebanhos». Mas, entre tantas frases que escreveu e se imprimem, entre tantas que me disse o relato ou não relato, a que o contém com maior simplicidade é aquela que uma vez me disse em Lisboa. Falava-se de não sei quê que tinha que ver com as relações de cada qual consigo mesmo. E eu perguntei de repente ao meu mestre Caeiro, «está contente consigo?» E ele respondeu: «Não: estou contente». Era como a voz da Terra, que é tudo e ninguém.
*
Nunca vi triste o meu mestre Caeiro. Não sei se estava triste quando morreu, ou nos dias antes. Seria possível sabê-lo, mas a verdade é que nunca ousei perguntar aos que assistiram à morte qualquer coisa da morte ou de como ele a teve.
Em todo o caso, foi uma das angústias da minha vida — das angústias reais em meio de tantas que têm sido fictícias — que Caeiro morresse sem eu estar ao pé dele. Isto é estúpido mas humano, e é assim.
Eu estava em Inglaterra. O próprio Ricardo Reis não estava em Lisboa; estava de volta no Brasil. Estava o Fernando Pessoa, mas é como se não estivesse. O Fernando Pessoa sente as coisas mas não se mexe, nem mesmo por dentro.
Nada me consola de não ter estado em Lisboa nesse dia, a não ser aquela consolação que pensar no meu mestre Caeiro espontaneamente me dá. Ninguém é inconsolável ao pé da memória de Caeiro, ou dos seus versos; e a própria ideia do nada — a mais pavorosa de todas se se pensa com a sensibilidade — tem, na obra e na recordação do meu mestre querido, qualquer coisa de luminoso e de alto, como o sol sobre as neves dos píncaros inatingíveis.
1931
Textos de Crítica e de Intervenção . Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1980.

 - 267.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Interpretação de Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett

Tem de ficar reservado à investigação posterior verificar se, dentro da tragédia, ou do drama de desenlace, haverá tipos de estrutura mais nitidamente marcados. Nós limitamo-nos a apresentar um exemplo prático para a compreensão da estrutura interior da tragédia. Assim se mostrará a maneira de trabalhar deste método, que tem em vista as últimas profundidades de uma obra. Simultaneamente tornar-se-á nítido o que se ganha assim para o esclarecimento de toda a obra. Escolhemos como exemplo, a obra que, segundo os críticos contemporâneos, é a obra-prima do teatro português, em si tão escasso: o Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett. Na Alemanha a obra foi traduzida por W. v. Lukner (1847), Georg Winkler (1899) e outros, e foi também representada ocasionalmente. Por pouco não encontrou o caminho do teatro de ópera: F. Mendelssohn-Bartholdy pediu ao Conde Schack um libreto de ópera que se chamaria Manuel de Sousa.
O assunto em si é histórico: Manuel de Sousa (1555-1632) tinha desposado a viúva de um nobre caído na funesta batalha de Alcácer Quibir; o regresso do que havia sido dado por morto destruiu a família e fez entrar os esposos em conventos. Sob o nome de Frei Luís de Sousa chegou Manuel mais tarde a ser um escritor célebre. (Ademais Manuel fora na sua juventude cativo de mouros que o levaram para Argel; ali se encontrara com Cervantes que em Persiles y Sigismunda faz contar ao seu companheiro de desgraça uma romanesca história da sua vida.)
Se a categoria do drama é quase irrefutada, a sua interpretação tem dado lugar a muitas discussões. Farinelli interpretou a tragédia como tragédia de carácter (citado por Joaquim de Araújo, o Frei Luís de Sousa, pág.65). António Arroyo (A figura dramática de Maria de Noronha, Sep. de A Águia, 1922) focava Maria como verdadeiro centro; ela seria, por um lado, símbolo da idade de ouro moribunda; por outro, seria uma duplicação de Manuel de Sousa e, como tal, encarnação do seu espírito poético. Outros consideravam o Cristianismo a ideia verdadeiramente construtiva da obra; da retirada das pessoas principais para o claustro faziam um apelo ao leitor para que pensasse na salvação da sua alma. A. J. da Costa Pimpão (Biblos, XVI) colocou de novo Maria no centro e interpretou também a génese do drama partindo da ansiedade do poeta pela sua própria filha ilegítima, o que, aliás, já tinham suspeitado Th. Braga e Le Gentil. Andrée Crabbé Rocha (O Teatro de Garrett, 1944), que conseguiu projetar plena luz sobre a génese e o problema das fontes, nomeou «quatro pontos cardeais» que, simultaneamente, seriam traços essenciais do português (pág.166): «o erotismo atenuado pelo medo do inferno, as forças transcendentes, fatais e conjugadas da igreja, a honra e o brio do português velho, e o idealismo sentimental de Maria.» A estas «dominantes» teria Garrett dado «corpo e seiva». Aqui, a autora força a um salto, pois não explica como aconteceu este «dar corpo e seiva». Não seria talvez também tão simples provar como se pode construir uma obra com estes quatro impulsos ideais.
Antecipando: Se olharmos da obra para a sua génese, não acreditamos nos quatro impulsos ideais, nem, aliás, em qualquer dos outros enunciados, tais como idade de ouro, cristianismo, filha ilegítima. E, olhando da obra para diante, não cremos que a sua importância e influência residam nas quatro dominantes (embora, sem contestação, elas pertençam ao fundo ideológico da obra). A nossa primeira resposta é, para ambos os lados: a obra foi criada – e atua – como tragédia.
O alto apreço em que é tida, precisamente no estrangeiro, apreço que se reflete nos esforços de vários investigadores estrangeiros em torno deste drama, não se deve, com certeza, ao seu carácter informativo, i. é, documental da maneira de ser portuguesa, mas sim à sua categoria artística. E isto quer dizer: ao seu carácter de tragédia. Que o incentivo decisivo foi a intenção de escrever uma autêntica tragédia, isto poderia provar-se suficientemente com as palavras do autor, em que neste caso acreditamos plenamente.
Delas depreendemos ainda mais: que ele queria escrever uma tragédia com a simplicidade e concentração antigas. Na sua «fonte» descobriu ele um argumento que continha «toda a simplicidade de uma fábula trágica antiga».
Ao procurar entender a estrutura especial de tragédia desta obra (toda a parte filológica foi definitivamente esclarecida por Andrée Crabbé Rocha), partimos da fábula. Pode reproduzir-se aproximadamente assim: Uma mulher, a quem foi anunciada a morte do marido, longe da pátria, casa com um outro, que, já antes, lhe não era indiferente. Deste casamento nasce uma filha. Anos volvidos, regressa o primeiro marido tido por morto. O seu regresso destrói toda a família.
Fábula na verdade simples, na qual, aliás, nos impressiona imediatamente que as pessoas não podem desenvolver uma atividade palpável: não é, por certo, uma fábula trágica no sentido da estética idealista. Aproximemo-nos dela sem tais preconceitos, e então temos a esperar da essência do trágico que a situação da família nos seja exposta, no momento do regresso, como absolutamente irremediável. O mundo de Garrett é com efeito de tal feição que o regresso do primeiro marido causa a desonra da mulher e da filha e lhes tira assim toda a base da existência. (Outras elaborações do motivo do marido que regressa mostram que o mundo poético pode também ser organizado diversamente. Não faltam comédias sobre este motivo. Em Garrett é sobretudo a religiosidade que contribui para o rigor do seu mundo e que, já por isso, resulta ser um meio e não um fim.) Além disso, compreende-se logo que Garrett não marcou para o seu drama a mesma sequência de tempo que está incluída na fábula, mas procedeu, antes, a uma forte concentração. Escolheu a forma do drama analítico, em que os acontecimentos no palco nos apresentam apenas a última parte de um extenso acontecer, comprimida num breve espaço de tempo.
Porém o tempo, neste drama, tem ainda peculiaridades especiais. Como subdivisões não há nele só horas, dias e anos, mas datas e espaços de tempo estranhamente carregados. Tais datas suscitam um acontecimento fatal, indicam uma potência escura e a sua atuação quase rítmica. Sete anos se passam entre a morte do primeiro e o casamento com o segundo marido (as «fontes» falam de 17 a 18 anos), duas vezes sete anos decorreram desde então. A sexta-feira é um dia especial para Madalena (II, 5); em II, 10 ouvimos que o seu casamento, a fatídica batalha e o conhecimento com Manuel caem no mesmo dia do ano; é neste dia também que o primeiro marido regressa. Também para o Romeiro o dia do regresso é, assim, uma data especial (II, 14), etc. As figuras evidenciam  um vivo sentimento desta fatalidade de datas e espaços de tempo, sentem medo da «hora fatal» (III, 7), do «dia fatal» (II, 10 e mais vezes). Esta estruturação do tempo é obra de Garrett, e, precisamente porque o é, parece lícito admitir já aqui que ele é de força expressiva quanto à essência do drama, à sua estrutura de tragédia.
Concentração é a primeira característica da estruturação do tempo; caracteriza também a estruturação do espaço. O primeiro ato passa-se no palácio de Manuel, o segundo e o terceiro no de D. João de Portugal. A mutação de lugar é forçosamente motivada, mais ainda: o primeiro cenário desaparece, deixa de existir – Manuel deita fogo ao seu palácio (traço histórico); o cenário do segundo e terceiro atos representa um mundo absolutamente fechado em si próprio. Porém, como o tempo, também o espaço é de género especial. Não que ele tome o papel principal: não devemos ver nele, por exemplo, o que era um solar à volta de 1600 e como lá se vivia. O local da ação é formado por categorias semelhantes às do tempo, quer dizer, a partir do acontecimento. O palácio pertence ao marido que regressa, insufla vida ao passado. Neste mundo dramático, as recordações transformam-se logo em pressentimentos. O espaço anuncia a desgraça que se aproxima, tem uma ação opressiva, fatal, ominosa. Pois um «omen» é a anunciação sensível de uma fatalidade iminente. Há no espaço dois sinais especialmente pressagos e ominosos. Quando arde o retrato de D. Manuel, isto aparece-nos, no mundo do drama, como indício certo de desgraça e assim é sentido pelas figuras. Atua também como «omen» o segundo retrato, o de D. João de Portugal. Madalena e também Maria param diante dele como que fascinadas. No fim do segundo ato torna-se meio de reconhecimento.
O espaço é formado pelo acontecimento. Não temos diante de nós um drama de espaço, nem tão-pouco um drama de personagem. Nas personagens mostra-se imediatamente a mesma concentração: são em número reduzido. Estão relacionadas umas com as outras de modo surpreendente e formam um todo fechado, ou seja uma família. Compõe-se de pai, mãe, filha, e criado que é parte integrante da família. A única figura «técnica» de importância é ainda irmão de Manuel. Pode-se quase dizer: a família é uma personagem, é a personagem do drama.
Se, partindo de uma determinada conceção do trágico, se exige que uma figura trágica tenha de ser sempre uma figura ativa, que se empenhe na defesa de uma ideia, neste exemplo se revela a estreiteza de tal conceção. Pois o nosso ponto de partida, a que nos conservamos fiéis, é a de que o Frei Luís de Sousa é uma autêntica tragédia. Nenhum membro desta família (e esta, como todo, naturalmente também não) é um herói ativo, nenhum pretende defender ideias (a aparente exceção, o «desafio» lançado por Manuel aos governadores ao deitar fogo ao palácio, será ainda debatido por nós). Podemos, decerto, dizer que esta família se que conservar como família, que estes seres humanos se pertencem e querem pertencer uns aos outros. A família está construída como família completa, viva. É digna de admiração a arte como o poeta sabe individualizar as relações entre os esposos, as relações da filha com o pai e a mãe, e as do criado com os três, - como ele sabe tornar plástica a família.
Mas as figuras não são só construídas como partes da família; também elas, pela criação do poeta, estão nitidamente orientadas para o acontecimento. Madalena vive com o seu desassossego, o seu pavor, os seus pressentimentos, desde a primeira palavra, para o acontecimento que há de vir (pelo que, simultaneamente, lhe é tirado tudo o que de acaso pudesse ter). Ainda mais, ela é construída pelo sentimento de ter cometido um «crime», por ter amado Manuel ainda em vida do primeiro marido. O «crime» pertence pois inteiramente à trama do acontecimento. (Ao mesmo tempo recai, assim, a sombra duma mácula sobre Maria como filha do pecado.) Como peculiaridade, Maria revela propensão para a doença, e esse estado precário de saúde de novo lhe dá predisposição para a morte final. Telmo faz parte da família; visto, porém, morfologicamente, ele é, ao mesmo tempo, a encarnação do passado que, ameaçador, penetra no presente e pressagia, ominoso, um futuro fatal. Telmo e Maria estão ligados pela fé no regresso de D. Sebastião. Este motivo não se limita a criar a atmosfera histórica, não comporta apenas patriotismo. Se estivesse na obra só com tal fim, seria um motivo correspondente mais ao género «play». Na realidade é um motivo de ação. Da mesma maneira que no Rei Édipo, logo no principio, a anterior libertação de uma catástrofe mediante a resolução do enigma por Édipo espelha o acontecimento futuro.
Finalmente, Manuel é quem menos parece estar construído em ordem ao acontecimento, sobretudo no princípio. Nele vão embater sem efeito os pressentimentos e receios de Madalena, sobre ele quase não atuam os indícios de desastres. Em compensação, é ativo, tem um objetivo em vista, e isto numa direção que não pertence, de forma alguma, ao acontecimento. O incêndio da própria casa quer ser um desafio aos governadores. Porém isto não prossegue, nem com uma só palavra: fica sendo um «motivo cego». A. Crabbé Rocha quis ver uma ligação íntima com o que vai desenrolar-se: «um gesto destes… prepara a digna e estoica renúncia aos seus afetos, depois da renúncia aos seus bens». Nós confessamos que nem no final conseguimos ver uma estoica renúncia, nem conseguimos compreender o incêndio como renúncia. Parece-nos exprimir, pelo contrário, atividade, resistência, e quase que sentimos uma quebra para com a passividade da atitude final. Mais adiante veremos que o «motivo cego», sem dúvida perturbador, não foi usado, somente, devido aos seus efeitos dramáticos e teatrais, embora estes estejam projetados em primeiro plano.
A despeito de tudo, também Manuel está ordenado ao acontecimento, logo desde o princípio. Os pressentimentos da mulher, na verdade, são para ele «quimeras de criança» (I, 11), mas, pouco depois, diz: «Meu pai morreu desastrosamente caindo sobre a sua própria espada. Quem sabe se eu morrerei nas chamas ateadas por minhas mãos?» Assim, subordina-se como figura a um mundo em que impera o «factum», e mais ainda: prova pertencer a uma família especialmente carregada, pois os seus membros atraem a morte sobre si próprios. E de facto: o destino pega-lhe na palavra. No ponto em que se mostrava ativo e parecia realizar livres resoluções (sacrifício da própria casa e mudança para o palácio de D. João), ele só ajudava o curso da fatalidade, suspensa sobre ele e a família.
Assim espaço e figuras mostram-se absolutamente formados pelo acontecimento e pertencentes a um mundo que corre para a ruína iminente. Um casamento pecaminoso (o «crime» de Madalena) e com ele o estigma de um nascimento maculado, uma família ameaçada pelo destino (os Sousas), mudança para um lugar ominoso, aparecimento de presságios significativos, fatalidade das datas, o marido que volta, a renúncia ao mundo – são estes os motivos pelos quais o acontecimento se liga ao final necessário e que uma análise da construção poderia mostrar ainda mais nitidamente. (O momento retardador no terceiro ato (5,12) já foi por nós discutido. Na sua intencionalidade atua como algo de perturbador como, incidentalmente, Garrett, como técnico e prático do teatro, colide às vezes com o trágico; comparar, por exemplo, com a «ironia trágica» em III, 6 e outros sítios. Rodrigues Lapa aponta estes casos nas anotações à sua edição do texto.)
Trata-se de um decurso necessário, que conduz ao extermínio. Sobre isto o poeta não deixa dúvidas: não morre só Maria, mas também a renúncia ao mundo por parte dos pais é extermínio; «para nós já não há senão estas mortalhas» (III, 9); «aqui não morre ninguém sem mim» (III, 11). E de novo nos é lícito apresentar a interpretação de Garrett: «a catástrofe é um duplo suicídio… morreram para o mundo». É um extermínio completo. Desaparece uma família inteira. Mais uma vez é significativa uma alteração das fontes. Com efeito, estas falam de filhos do primeiro casamento de Madalena. Se Garrett tivesse conservado isto, o extermínio não seria completo, o mundo não seria fechado.
É um decurso necessário e um extermínio necessário. Não há casos isolados, e até ações que parecem obedecer à livre resolução servem para o decurso do acontecimento. Por detrás deste torna-se sensível um poder unitário que tudo dirige. Anunciou-se e mostrou-se por meio de pressentimentos, visões (Maria) e «omina»: como destino, como «fatum».
Madalena traz em si o sentimento de ter cometido um crime, o seu segundo casamento afigura-se-lhe ter sido um delito. Assim surge a pergunta se o destino não encarnará a qualidade de uma ordem moral no mundo e se o extermínio não adquire, assim, o aspeto de um extermínio eticamente necessário. A pergunta justifica-se, mas é refutada pela própria obra. Até no caso de reconhecermos plenamente uma culpa em Madalena, o facto de também os outros, os inocentes, terem sido arrastados ao extermínio, seria inquietante, pavoroso, assustador. Mas a culpa nem sequer existe, objetivamente, para Madalena. (Objetivamente: dentro do mundo do drama.) A palavra «crime» é um exagero compreensível do ponto de vista da sensibilidade de Madalena, mas não a designação válida para o facto em si. A realidade não chega para nos fazer aceitar sequer o extermínio de Madalena para restabelecimento de um equilíbrio. Além disso, todo o mundo deste drama não é estruturado moralmente, mas sim fatalisticamente. De novo se prova como é estreita de mais perante esta tragédia real aquela conceção idealista do trágico, que procura a culpa pessoal e, como fim da tragédia, exige a harmonia da ordem mundial. Quem quisesse interpretar assim o Frei Luís de Sousa, mostrar-se-ia demasiado mole e fraco diante da dureza e grandeza deste trágico: uma família que deve existir, plenamente justificada e cheia de sentido, como valor, é destruída absurdamente e, ao mesmo tempo, com pleno sentido.
Nesta altura se deveria pôr a antiquíssima questão do «prazer pelos assuntos trágicos», o problema do sentido de tais obras literárias no conjunto da cultura. Não a estudaremos aqui, pois com ela entraríamos no terreno da Estética e da Filosofia da Cultura. Ficamo-nos pela obra, porque há algo ainda a acrescentar. –
Ainda não está bem determinada a essência trágica do drama. Sentimos nele uma grandeza especial. Resulta, em parte, do facto de não se tratar duma família qualquer, mas da dos Sousas e Vilhenas, como nos é revelado várias vezes e com certa insistência. E contudo são pequenos os efeitos que disto provêm, porque a própria obra nos impede de olhar para além da família tão limitada num mundo mais vasto e determinar nele a categoria dela. O Frei Luís de Sousa tem pouco do drama histórico, - ou não seria a tragédia pura que é. A grandeza entra nela sobretudo pela altura do adversário. Pode surpreender que nunca seja evocado por um nome próprio: através de todo o drama evita-se o termo «destino». Mas em troca topamos palavras e expressões tais como «fatal, funesto, agouro, prognósticos, pressentimentos de desgraça, desgraça a cair, desgraça eminente», etc. Só aceitando-as com todo o seu significado nos mantemos sensíveis perante a grandeza do adversário e, assim, da tragédia. Não se trata de uma catástrofe qualquer, mas sim de uma catástrofe planeada de há muito e realizada com ímpeto por um poder superior fatal.
Mas a impressão de grandeza resulta ainda de um outro facto. Só agora se revela com clareza todo o significado do motivo «sebastianista». Logo na segunda cena fundem-se os dois motivos de regresso quando Madalena diz a Telmo: «mas as tuas palavras misteriosas, as tuas alusões frequentes a esse desgraçado rei D. Sebastião, que o seu mais desgraçado povo ainda não quis acreditar que morresse, por quem ainda espera em sua leal incredulidade, - esses contínuos agouros e que andas sempre de uma desgraça que está iminente sobre a nossa família…» Na mesma frase ligam-se os dois motivos!
No Sebastianismo, como ele é representado no Frei Luís de Sousa por Telmo e Maria («o nosso santo rei», diz Maria em I, 3), reside não somente a crença em que o rei ao voltar (o «Encoberto») conduzirá a uma época de brilho para Portugal. Infiltraram-se nele conceções messiânicas mais antigas e relativas ao fim próximo do mundo. Com Sebastião começará uma nova época mundial do direito e da grandeza, a qual será a última no plano divino da salvação dos homens.
O regresso que se realiza no Frei Luís de Sousa é, visto de lá – e temos de o ver assim, segundo a vontade da obra -, um anti-regresso. Não leva à redenção, mas à catástrofe, e não é uma «graça», mas sim uma «des-graça». O nimbo messiânico à volta do mito sebástico paira à volta do regresso destruidor de D. João de Portugal. O próprio drama obriga-nos à representação concreta de tais relações. Em III, 11 chama Maria a D. João «homem do outro mundo», «anjo terrível», falando das suas visões. E quando, na cena seguinte, o vê e ouve, ela grita: «É aquela voz, é ele, é ele!» Parece-nos ser uma fraqueza artística a maneira como Garrett se aproveita, aqui, das visões de Maria. Provém mais uma vez da vontade de ser muito claro. É como se Garrett tivesse duvidado dos efeitos adequados do motivo «sebastianista» por si só. O facto de os intérpretes não terem reconhecido toda a importância do motivo parece justificar o processo do autor. Todavia, pode-se confiar em que o fundo numinoso desse motivo tem atuado plenamente nos espetadores do drama, mesmo que não tivessem tido consciência disso. Deve-se, em todo o caso, àquele motivo uma boa parte da grandeza própria do Frei Luís de Sousa.
Todos aqueles que não reconhecem o extermínio da família como o verdadeiro fim da ação dramática ou que querem abrandar o ímpeto da destruição por uma culpa pessoal, diminuem com isto a grandeza da tragédia. Contudo, e isto é o último resultado acessível à interpretação, foi o próprio Garrett que diminuiu um pouco, só um pouco, na verdade.
Não falámos ainda do título, que, afinal, pertence também à obra. Surpreende-nos que Garrett não tenha posto no título um motivo central, ou a família, ou um «omen», ou qualquer outra indicação acerca do destino, mas sim escolhesse apenas uma figura da família. Mas Frei Luís de Sousa não é uma figura da família, não pertence mesmo, de forma alguma, à peça. Não surge em parte alguma, não existe. Ainda não existe. A obra conta com a cultura do espetador, que sabe que este Manuel virá a ser, um dia, o grande Frei Luís. Manuel soçobra, e contudo, não soçobra. Sobre a tragédia acumula-se alguma coisa diferente. E então, talvez se possa compreender também por que motivo o poeta, no fim do primeiro ato, vai um pouco além da estrutura da ação e da tragédia: quando Garrett constrói a figura com traços que sobrepujam a ação, prepara-lhe uma continuação da vida. Pode ser exterminado só parcialmente, como membro da família, mas não na totalidade, como figura de valor autónomo. Esta figura mais completa viverá para além do extermínio parcial e há de até desenvolver-se: o sofrimento faz dele um escritor. Assim se sobrepõe à estrutura da tragédia – por cero só muito ligeiramente – uma outra: o mito do artista. Evidentemente, na aceção romântica, à pergunta: o que é o poeta?, responde um mito romântico: é quem caminhou através do mais profundo sofrimento na terra, quem foi marcado pelo destino.
Esta estrutura só é ligeiramente indicada. O mundo como tal é drama de ação, tragédia, em que o acontecimento é dirigido pelo destino. Se procurássemos um nome apropriado, só poderia ser: a obra é uma tragédia, e tragédia de destino.
Se, realmente, olharmos um pouco para além da obra, bastam alguns conhecimentos da história da literatura para encontrarmos no Frei Luís de Sousa uma estrutura típica, designada como drama de destino (Schicksalsdrama, tragédie fatalle). Como precursores é costume nomear Lillo, Karl Phillipp Moritz, Tieck, Schiller (Braut von Messina). A tragédia de destino (romântica) recebeu o seu cunho especial na obra 24 de Fevereiro de Zacarias Werner. Gorner provou que para a tragédia de destino são típicos cinco grupos de motivos: incesto, profecia de uma desgraça, maldição sobre uma família, assassínio de parentes, regresso. Todos os motivos se agrupam em torno de uma família e ligam-se numa cadeia ininterrupta ao serviço de um destino imperante, que conduz à destruição dessa família. Tempo e espaço estão carregados de fatalidade até rebentarem, isto é, são ominosos: 24 de Fevereiro é o dia anunciado no título, a data fatal, e sete anos o espaço de tempo fatal. Facas, punhais, quadros são os requisitos típicos, fatais, da tragédia de destino.
Quando Garrett ironizava os dramas do seu tempo: «uma dança macabra de assassínios, de adultérios e de incestos, tripudiada ao som das blasfémias e das maldições» - mostra como conhecia bem o drama de destino. Porém, com isto não pode iludir-nos: a sua obra aproxima-se deste tipo. Uma comparação, que não podemos apresentar aqui, poderia mostrar efetivamente o enobrecimento e subtilização íntima alcançados pelo dramaturgo português. Garrett conhecia a tragédia alemã de destino. Conhecia Die Braut von Messina de Schiller, conhecia o 24 de Fevereiro, de Werner, apresentado por Mme de Stael como o maior dramaturgo alemão depois de Schiller, cuja obra ela trata exaustivamente. Desde 1823, havia uma tradução francesa: em 1828, o «Globe», com o seu predomínio, chamou a atenção para o autor num artigo importante. Desde 1827 – e isto deve ter sido mais importante para Garrett do que o seu conhecimento da literatura alemã – torna-se poderosa a influência da tragédia de destino sobre o drama francês (Ducange e Dinaux, V. Hugo, Delavigne, A. Dumas, etc.). Mas liga-se aqui com o drama histórico: a estrutura da tragédia e a do «play» sobrepõem-se, em graus diferentes, uma à outra. Neste ponto, mostra-se de novo a grandeza de Garrett: deu o colorido histórico só até ao ponto conveniente à ação trágica, mas, no todo, criou uma obra que é puro drama de ação, pura tragédia, e que pode ser designada, talvez, como cume de toda aquela dramaturgia pertencente à vasta montanha do drama do destino romântico.

Parece-nos ter mostrado que a compreensão do genérico, e só ela, é capaz de verificar o que uma obra é no fundo. E, ao mesmo tempo, vimos que, precisamente com isto, a história da literatura bem como a valorização das obras adquirem pontos de partida da maior fecundidade para o seu trabalho.

Wolfgang Kayser, Análise e Interpretação da Obra Literária, vol. II

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

O Papel dos Portugueses na Civilização

A Mensagem, de Fernando Pessoa, é uma obra que foi escrita num período de crise e é, para o poeta, o primeiro passo, na construção de um outro futuro. Um futuro em que se considera possível, se se estiver na consciência plena das limitações dos homens, assumir a derrota ultramarina e corroer a pobreza instalada nas mentes das pessoas que se traduz em negativismo e mediocridade, males do seu tempo.

A Mensagem surge então como a expressão poética dos mitos, já que não se trata de uma narrativa sobre os grandes feitos dos portugueses no passado, como em Os Lusíadas, mas sim, de um cantar de um Império de teor espiritual. Assim não são os factos históricos propriamente ditos sobre os nossos reis que mais importam; são sim as suas atitudes e o que eles representam. Por isso mais do que heróis são como símbolos de diferentes significados.

A Mensagem tem então como tema a nação portuguesa, a essência de Portugal e a sua missão a cumprir. Encontra-se dividida em 3 partes distintas: BRASÃO, MAR PORTUGUÊS e O ENCOBERTO.

A primeira parte - BRASÃO - corresponde ao nascimento, com referência aos mitos e figuras históricas até D. Sebastião, identificadas nos elementos do brasão português e que serviram de alicerces e fontes de inspiração.
No poema “Os Castelos” começa por localizar Portugal na Europa e em relação ao Mundo, procurando evidenciar a sua grandiosidade e o valor simbólico do seu papel na civilização ocidental quando afirma "O rosto com que fita é Portugal!".
Depois apresenta várias figuras deste povo heróico e guerreiro, construtor do império marítimo; faz a homenagem aos que construíram o País (Ulisses, Viriato, Conde D. Henrique e seu filho Afonso Henriques, D. Dinis, D. João I, D. Sebastião, D. Nuno Álvares Pereira, D. Henrique, D. João II e Afonso de Albuquerque); e refere as mulheres portuguesas, D. Teresa e D. Filipa de Lencastre, mães do fundador e da "ínclita geração", como "antigo seio vigilante" ou "humano ventre do Império".

Na segunda parte – MAR PORTUGUÊS - surge a vontade de Deus em glorificar os feitos dos portugueses. Inicia-se com o poema Infante, “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.”
Nos outros poemas evoca os Descobrimentos com as personalidades Diogo Cão, Bartolomeu Dias, Fernão de Magalhães e Vasco da Gama e acontecimentos que exigiram uma luta contra o desconhecido e os elementos naturais, com as glórias e as tormentas, considerando que valeu a pena. No antepenúltimo poema evoca a partida de D. Sebastião na Última Nau e o último poema é a Prece, onde renova o sonho.

Na terceira parte - O ENCOBERTO - aparece a crença no milagre que livre do Presente de sofrimento e de mágoa, pois "falta cumprir-se Portugal". Encontra-se tripartida em Os símbolos, Os avisos e Os tempos.
Manifesta a esperança e o "sonho português" no Quinto Império, pois o atual Império encontra-se moribundo, e na vinda daquele Salvador/Encoberto que deverá chegar para edificar o Quinto Império, um império moral e civilizacional.


Na perspectiva de Fernando Pessoa, os Portugueses são o povo eleito de Deus que Ele nunca abandonará pois é neles que conseguirá pôr a sua vontade e fazer nascer a obra que redimirá toda a miséria que a Humanidade tem sofrido. Os corações dos homens e mulheres que estejam dispostos a sacrificar-se pela Pátria, inspirados pelo Sebastianismo, o Mito do Encoberto e o Quinto Império, transcender-se-ão, salvando a humanidade.
A Mensagem

Esta obra de Fernando Pessoa refere o glorioso passado de Portugal, tentando encontrar uma explicação  para a antiga grandeza e a decadência existente na época em que o livro foi escrito. É constituída por três partes, correspondentes também à evolução do Império Português que teve o seu nascimento, realização e a sua morte. Contudo, a “morte” neste sentido não poderá ser entendida como um fim definitivo, uma vez que pressupõe uma ressurreição. Esta ressurreição culmina com o aparecimento de um novo império, o quinto império.
A 1ª parte da obra corresponde ao nascimento do império português e tem o nome “Brasão”. Esta secção dedica-se: à localização de Portugal na Europa e em relação ao mundo, como é exemplo no poema “O dos Castelos” onde salienta a magnitude do país; aos heróis lendários ou históricos, desde Ulisses a D. Sebastião e ainda à apresentação da definição de mito ("O mito é o nada que é tudo") e do povo português como o construtor do império marítimo. Ou seja, no geral é a fundação da nacionalidade, daí esta ser considerada a parte do nascimento.
A 2ª parte da obra é a realização do império português e tem o nome “Mar Português”. Apresenta poesias inspiradas na ânsia do desconhecido e no esforço heróico da luta contra os obstáculos, tal como "O mostrengo" encontrados no mar. É nesta parte que o poeta salienta a grandeza do sonho convertido em realidade, unificando a ação humana e o destino traçado por Deus. O poema "O Infante" faz parte desta secção da obra e realça a relação entre o poder de Deus na criação, o Homem como agente representante e a obra como resultado de toda esta relação lógica ("Deus quer, o homem sonha, a obra nasce"). Os outros poemas evocam as glórias e as tormentas passadas ao concretizar-se o sonho dos Descobrimentos.
A 3ª parte denomina-se “O Encoberto” e representa a decadência, a “morte” que foi referida anteriormente. É apresentado o Império no seu estado decadente. Portugal "a entristecer", pois "Tudo é incerto e derradeiro. / Tudo é disperso, nada é inteiro." (“Nevoeiro”). No poema “Nevoeiro”é simbolizada a confusão, o estado caótico em que Portugal se encontrava, tanto como Estado, como emocionalmente e mentalmente.


O que se pretendia nesta obra era o despertar das consciências, levando-as a acreditar e desejar a grandeza outrora vivenciada. Fernando Pessoa espera poder contribuir parar o reerguer da Pátria, relembrando, nas 1ª e 2ª partes da Mensagem, o passado histórico grandioso e anunciando a vinda do Encoberto, na figura mítica de D.Sebastião, que anunciaria o advento do Quinto Império.
O papel dos portugueses na civilização seria a construção deste quinto império, um império espiritual, capaz de elevar os portugueses ao lugar de destaque que outrora ocuparam a nível mundial. Uma supremacia e um império não em termos materiais, mas em termos espirituais.

É nesta nova concepção de império que assenta o carácter simbólico e mítico que enforma a obra de Fernando Pessoa.

Catarina Castela

Crítica - V Império

 O Quinto Império é um poema da Mensagem, obra escrita por Fernando Pessoa, e que se insere na terceira parte, O Encoberto. Este surge na Bíblia e torna-se mito nas interpretações que sucederam ao longos dos tempos.
A Mensagem é uma obra épico-­lírica, simbólica e mítica. Dentro da mitologia, esta aborda a vida e a morte de um mundo - Portugal - que será seguida de um renascimento, que é, então, o Quinto Império.
 Segundo o Padre António Vieira existira 4 impérios, que eram eles os Assírios, os Persas, os Gregos e os Romanos, sendo o quinto o Império Português, que consistia numa crença messiânica e quiliástica. Na Mensagem, Pessoa anuncia então este novo império civilizacional. Este era dado como um império que ia para além do material, devido ao "intenso sofrimento patriótico". Em suma, este Quinto Império, é uma utopia através das palavras de Pessoa, e seria uma forma de legitimar o movimento autonomista português, que iria por fim à União Ibérica. A esperança deste novo império era algo espiritual, isto é, fazia parte de um sonho concebido por Portugal, algo que, sendo inconsciente, ia para além da nossa natureza. Segundo o poeta, o sonho era a chave para a felicidade, uma vez que as pessoas que se achavam felizes, viviam, na realidade, numa tristeza imensa, pois estas apenas se contentavam com aquilo que tinham, em vez de sonharem com algo que ia para além do viver. Em sumo, só é possível ascender à felicidade na consciência.
 O exemplo mais consistente é o de D. Sebastião - o quinto império está relacionado com o Sebastianismo, na ordem em que este era dado como um profeta, é um dos homens de Deus, tendo por isso fermentado na memória de todos e perdurado na recordação. Este sonhou em ser imperador do Quinto Império.
   Acreditava-se na formação de um império por parte do povo português, uma vez que este era capaz de tal, o que já tinha sido provado através de todas as suas vitórias, nomeadamente, através dos descobrimentos, o que fazia com que o povo lusitano tivesse, no sentido divino, um destino superior em relação aos restantes povos. Neste quinto império, que é um império global, a paz permaneceria infinitamente, em que, como referido anteriormente, constituiria uma utopia. Este é grandioso e desejado por toda a nação, que iria glorificar Portugal.
Fernando Pessoa acreditava deliberadamente de que Deus não pode abandonar o seu outro povo eleito e que depois de todas as advertências, Portugal virá a construir novamente o seu mundo de paz, por apesar de todo o sacrifício.
 Em parte, o Quinto Império identifica-se com a Idade do Ouro de Ovídio e, consequentemente, com a ilha dos Amores d'Os Lusíadas, Camões, devido a toda a sua perfeição e carácter glorificador.
  O Dia a que o poema se refere, é o nascimento e a plenitude da vida, ou seja, o erguer do Quinto Império, e a Noite é, então, a morte de D. Sebastião, que lutou pela sua concretização.
 Em suma, o Quinto Império tem em si a«uma perfeição total, que recompensará o povo português, e que possa superar a infelicidade, iludida pela felicidade aparente, e que esta seja feita através dos sonhos. D. Sebastião sonhou e lutou pela formação deste novo império, sendo por isso recompensado e merecendo por isso, após a sua morte, repousar com Deus.

Marina Reis, nº18

sábado, 16 de novembro de 2013

Mensagem Dois

Sem se mexer, nem sequer por dentro, como dele dizia Álvaro de Campos, Fernando Pessoa agudamente se observa a si mesmo e ao grupinho que com ele tinham formado os três poetas. Era o conjunto de mais penetrante inteligência, de maior capacidade de ironia, de menor provincianismo que jamais se constituía em Portugal; no entanto, tendo tão superiormente ultrapassado a vida, podendo, por exemplo, dizer a um Sá-Carneiro que o não achavam completamente civilizado, podendo tratar a sociedade portuguesa do tempo com o desembaraço, o desdém e a agressividade com que a trataram – apenas, de onde a onde, com algumas ingenuidades, como a de propor Mensagem a políticos cuja característica essencial era a de não serem nem imperiais, nem proféticos, nem épicos mas chapadamente pedestres, retrógrados, locais – o certo era que afinal o meio ambiente acabava por os vencer, com as bebidas, o fumo e os cafés de Fernando Pessoa, o exílio sem glória de Ricardo Reis, a morte prematura de Alberto Caeiro, e é fora de dúvida ser a tuberculose uma doença de ambiente, e o cansaço permanente de um Álvaro de Campos. O que os abatia e afinal os unia num mesmo denominador era essa falta de uma energia que todos louvaram e todos punham como o bem mais desejável de todos os bens, mas que apenas lhe dava para escreverem seus panfletos de várias formas e os comentarem ou comentarem os dos outros à volta das mesas do Martinho.
O grito de ter vindo a noite e de ser vil a alma era afinal o grito de todos, mas nenhum tinha a coragem prática de agir. Era como se o acontecimento histórico que emasculara a Nação os tivesse emasculado também a eles; era como se a Europa socrática e renascentista, vingando-se de todo o desprezo cultural e político a que sempre Portugal a tinha votado; vingando-se daquele soberbo desdém que Fernando Pessoa melhor que qualquer outro exprimira em Mensagem, o desdém pelo estrangeiro que apenas achara o que no encontrar português só por destino não fora achado; vingando-se daquela autonomia religiosa que construiria a Trindade vivida de Santa Maria, o Menino Jesus e o Espírito Santo, em oposição a uma teologia pensada que tanto conservara de judeus, gregos e romanos; era como se ela, entrando na Península pela mão de Carlos V e com o caminho preparado para erros anteriores, tivesse dado o golpe fundamental para acabar de vez com os homens que jamais desprendiam suas mãos do leme ou que tendo na mão a pena somente a manejavam nos repousos da espada ou conservavam debaixo dos buréis os arneses vestidos. E tão separados tinham para sempre ficado os portugueses de seus antepassados que, mesmo quando um acaso interno os lançava aos antigos caminhos, não mais os conheciam: Fernando Pessoa estivera em África e a África se mascarara de Inglaterra; Álvaro de Campos estivera no Oriente e o seu Oriente fora Port Said e não Ormuz, fora um conde francês e não um Fernão Mendes; Alberto Caeiro estivera no Ribatejo e o seu Ribatejo nunca fora o de Giraldo nem o de Alfarrobeira; e Ricardo Reis, partindo para o Brasil, não soubera encontrá-lo.
O poder de esmagar de tal forma o que fora a Nação mais original do Ocidente e a de mais larga e profunda missão em todo o mundo só poderia ter sido dado à Europa por um grande acerto ou por uma grande tentação; para Fernando Pessoa a ideia de grande acerto não poderia existir, poruqe detestava a América do Norte e a Rússia e não podia deixar de vê-las como o perfeito fruto da mentalidade europeia; tinha por conseguinte de se voltar para a ideia de uma tentação diabólica, mais temível do que a de quedas anteriores, e de que a humanidade só possivelmente se veria redimida por um novo sacrifício, provavelmente pelo sacrifício de Portugal como nação. Essa tentação não podia ter deixado de ser a da eficiência, e a da eficiência vista não como serviço prestado aos outros, mas como uma afirmação da própria superioridade: como da outra vez, o Diabo pegara o pecador pelo Orgulho. E passava de coincidência interessante a necessidade lógica que, tendo o palco da nova tentação e da nova queda sido a Alemanha, fosse exactamente Carlos V quem tivesse vindo emascular a Espanha e Portugal; mais a este, como inimigo fundamental porque afinal Castela sempre tivera suas pretensões a Prússia da Península.
O golpe essencial a favor da eficiência tinha sido o de ver a sociedade como uma máquina de produção, em que cada qual tem de ocupar o seu lugar e de se desempenhar de suas tarefas com o máximo de obediência a uma organização central; para que isso se conseguisse tinham-se apurado as instituições estatais, eclesiásticas e escolares pondo-as, no máximo que era possível, ao serviço dos produtores. De todas elas, as que porventura tinham custado maior mal eram exactamente as escolares, porque a sua missão consistia em fazer durar o menos possível a criança, de modo a ter, para produzir, um maior número de adultos: é por isso que é inteiramente errado dizer-se  que, na época de sua revolução industrial tinha a Inglaterra no serviço das minas crianças de cinco anos; o que ela tinha trabalhando era uma coisa muito mais monstruosa: eram adultos de cinco anos de idade.
De então para diante em nada mais se mudou, na grande massa da educação, senão nas técnicas de fabricar adultos pelo assassínio das crianças; a humanidade de jeito ocidental pratica em grande escala o infanticídio do espírito, apenas o punindo quando é físico porque isso lhe rouba definitivamente a matéria-prima do adulto. Aquelas crianças que várias vezes Fernando Pessoa apontou como a melhor coisa que há no mundo, aquele Menino eternamente criança e humano que era Alberto Caeiro o Deus verdadeiro e supremo que faltava no universo, a essas diariamente as sacrificam nas nossas escolas, diariamente as crucificam, diariamente as imolam nas aras da Eficiência. O que permitiu à Europa dominar Portugal, chegando ao extremo de lhe apresentar o que há de mais estrangeiro, de mais alheio à índole nacional, como inteiramente nacionalista, foi o pecado de ter levantado como valores supremos de vida humana os do adulto, o saber, o trabalho e aquela separação de sujeito-objecto que permite a filosofia, a ciência e a técnica. A Europa se vendeu ao Diabo e o dinheiro que nisso ganhou lhe serviu para comprar Portugal.
E, comprando-o, destruiu o último refúgio que ainda poderia haver no mundo para as qualidades distintivamente humanas, as da imaginação, em vez do saber, do jogo, em vez do trabalho, da totalidade, em vez da separação; são essas e não as outras as que têm demonstrado os grandes criadores de ciência, os grandes artistas, ou os grandes políticos: por isso os perseguimos quando vivos e os aproveitamos, porque já eficientes, quando seguramente mortos. Não haverá salvação para o mundo enquanto não entendermos e fizermos penetrar me nossas consciências este facto basilar, e enquanto as nossas escolas, transformando-se inteiramente, não forem, em lugar de máquinas de fabricar adultos, viveiros de conservar crianças; enquanto não forem as crianças que nos levem, não pelo caminho que uma ciência fáustica previu, mas pelo que houver, dando a mão, ao mesmo tempo, a nós e às coisas: enquanto não for o Menino Jesus nosso Deus verdadeiro.
É evidente, no entanto, que a escola é apenas um dos elementos de um sistema; a pedagogia está ligada à sociologia, à economia e à teologia racionais por laços muito mais íntimos do que se pensa; tudo são fabricações de adultos. Pensam eles, os pobres, que pode jamais haver no mundo alguma forma satisfatória de governo organizado, de economia organizada ou de discurso do sobrenatural, a não ser que os pensemos sempre dentro de um mundo de adultos: fora dele, num universo de qualidades infantis, num Paraíso, e é por isso, porque os adultos aí eram crianças que não havia crianças como Adão e Eva, e só as houve depois que, para podermos comer e se vestir, principiaram eles a ser adultos, - num Paraíso, todo o governo que não for amar será absurdo, toda a economia que não for colher será absurda, toda a teologia que não for contemplar será absurda.
Poderia parecer que por este caminho se poderia Fernando Pessoa opor a todo o crescimento da técnica; mas é técnico Álvaro de Campos nos melhores momentos de si próprio e, se não exerce a sua profissão, é decerto pelos seus arrebatos melancólicos, mas também porque se não percebe um engenheiro naval num País que não mais constrói navios – embora possa, como a Holanda, fabricar paquetes ou cargueiros: e o grupinho de Pessoa sabe perfeitamente através dele que é exactamente pela técnica, mas pela técnica tomada como um jogo geral e não como um meio individual de ganhar dinheiro ou poder, que pode o homem abrir o seu caminho de regresso ao Paraíso: mas, para tomar a técnica como um jogo, é preciso que se seja anteriormente criança: a conversão religiosa ao Menino Jesus deve preceder a revolução social. O contrário seria materialismo, coisa de padres sem religião, como dizia Alberto Caeiro; o que também se poderia afirmar da religião que avassalou Portugal a partir do século XVI.
Ligando os pecados da Europa ao que foi Portugal antes de a noite vir, poder-se-ia pensar que o D. Sebastião da Mensagem, o Encoberto, o que há-de voltar na manhã de mais cerrado nevoeiro, quando toda a esperança parecer perdida, é ao mesmo tempo o Menino que jamais se resignou a ser adulto no Rei de Alcácer e o Menino que jamais se resignou a ser adulto nos melhores homens do mundo; a grandeza qual a Sorte a não dá seria, não a grandeza deste mundo em que logo se pensa, mas a grandeza do Reino que Jesus afirmava ser o seu e que seria povoado dos pequeninos que a si chamava e que apontava como modelo a seus discípulos; e à volta de D. Sebastião, iniciando no mundo o novo Império, cada homem e cada mulher, redimindo-se de ser adultos, iria oferecer a um Deus também Menino, libertado finalmente de sua Cruz e de seu distante Céu, o seu ramo infantil de contempladas flores.

É por esse Império, que nem ele nem os e seus companheiros têm a coragem ou a força ou a hora de construir, porque numa história movida por Deus tudo vem a ser o mesmo; é por esse Império, que não tem lugar marcado nos mapas porque vive no sorriso, no olhar, nos sonhos dos meninos; é por esse Império, que se tornará consciente ou inconsciente a nós, como se torna consciente ou inconsciente a uma criança o que, dormindo, a faz sorrir; é por esse Império, que só poderá surgir quando Portugal, sacrificando-se como Nação, apenas for um dos elementos de uma comunidade de língua portuguesa; é por esse Império, que já foi aurora de realidade e que hoje é apenas cavo passo que se escuta em palácios desertos, que Fernando Pessoa pensa, escreve, concebe génios, sofre recolhido e ignorado morre. Mas sobre ele reina, como já reinou sobre nós outros, aquele Menino Imperador que, em oposição ao Imperador germânico, o Imperador dos adultos, e iniciando seu Império pela abertura das prisões e pela abundância para os pobres, coroavam, por amor do Futuro, os portugueses do melhor tempo; e que ainda hoje coroam os homens de Santa Catarina, entre os quais vivo e escrevo: aqui, também, esperemos, por amor do Futuro.    

Agostinho da Silva, Um Fernando Pessoa

MENSAGEM UM

Àqueles a quem, não querendo mal, também especialmente não amam concedem os deuses uma vida fácil e benigna, que os faz, a eles e aos restantes, acreditar em protecção celeste; aos outros, porém, àqueles cuja carreira se vê essencial aos destinos do mundo, vendem os deuses, e bem caro, todos os dons de que os cumularam; e, porventura, o preço mais alto que reclamam de sua mercadoria é o de, a cada momento realmente importante da vida, nada disporem como que de maneira fatal, deixando que o seu amado possa, em plena liberdade, escolher o que mais é de seu agrado; e aqui a maior parte se perde: porque à chama que os tornaria celestes preferem a temperada medianidade que para sempre os prende à Terra.
Começa logo a escolha pela Pátria. Para a grande maioria dos homens, se apresenta a Pátria apenas como um acidente ou um acaso físico: são de onde nascem, e, a pouco e pouco, a convivência dos pais, de seus conterrâneos, mais tarde a Escola e o estado, os dois grandes organismos encarregados essencialmente de não deixar ninguém escapar das malhas do exército social, os vão gradual e realmente convencendo de que não poderiam ter nascido noutro lugar e de que uma escolha futura que livremente pudessem fazer representaria sempre e de qualquer modo uma diminuição ou uma traição. A outros, no entanto, e porque são amados dos deuses, se apresenta o caso de modo diferente: a vida, mostrando à superfície, como circunstância, o que é meditado e deliberado propósito de quem rege a História, os encaminha à escolha que decidirá os seus destinos: o de resplandecer num véu de glória, que é quase sempre, visto por dentro, um véu de lágrimas, ou o de ser jogado fora como um vaso de oleiro que mentiu, pela má qualidade do barro, à diligente regularidade da roda e à inventiva agilidade do gesto. Quem pode, em raro jogo, escolher o seu País por aí mesmo está escolhendo a sua vida: uma vida que dele mesmo se vai alimentar.
Para Fernando Pessoa, cuja existência se iria desenrolar, tanto quanto se poderia prever, no Portugal de seus tempos, isto é, no ponto mais baixo que poderia atingir a descendente curva da austera, apagada e vil tristeza, a alternativa apresentada foi a mais tentadora que se poderia imaginar: a da Inglaterra, e a de uma Inglaterra apreendida na sua história e na sua cultura. Por uma daquelas pequenas resoluções que movem depois as grandes molas, poderia Fernando Pessoa ter passado inteiramente ao domínio inglês e nele se afirmado como um homem de Império, já que o encontro se cumpria na África, ou como um homem de Universidade, já que o encontro era igualmente num ambiente à Walter Pater, com imaginários retratos de Inglaterra elisabeteana mascarando uma outra que apenas procurava colocar seus capitais e manter pela força os seus mercados. Numa ou noutra carreira, teria Fernando Pessoa sido célebre: as críticas a seus poemas ingleses seriam apenas o prenúncio do que outros críticos viriam a escrever; um outro Conrad, noutro domínio, se incorporaria à literatura inglesa; apenas isso, porém.
O que, no entanto, acontecia era que iam mais alto as ambições de Pessoa e penetrava a sua inteligência mais longe do que a dos estadistas ingleses. Era o mundo mais nobre, mais humano e mais divino, do que o supunha a Inglaterra e jamais se resignaria a aceitar como permanente, apesar de todas as suas excelências sobre os outros, apesar de não ter constituição escrita, apesar de tender já a uma Comunidade de nações livres, um império que, na base de tudo, mantinha as duas noções e invenções diabólicas da força e do lucro. No fim de contas, o melhor que a Inglaterra lançava sobre o universo já Portugal o fizera, muito antes dela; e Portugal porque não era de nenhuma Igreja reformada, porque se mantivera fiel a Roma e à fraternidade católica, porque nunca fora sequaz de uma ciência que tendia apenas a dominar, de uma economia que tendia apenas a explorar e de uma política que não era outra coisa senão de origem maquiavélica, deixara aberta, apesar das suas falhas, uma esperança para o futuro: a de que o seu império do mar fora apenas o primeiro passo, por isso mesmo ainda físico e político, de uma acção que depois a Europa, incompreensiva como sempre, lhe viria cortar: a de trazer para o mundo aquele Reino que milhões de homens quotidianamente imploram em vão.
Vai, pois, Fernando Pessoa, deliberadamente, confirmar o acaso físico: vai nascer português porque tem a convicção de que Deus não pode abandonar seu outro povo eleito e de que, passado o domínio da Europa, quando a técnica tiver esgotado todas as suas possibilidades, quando a economia protestante se verificar plenamente anti-humana, quando a centralização estatal se revelar estéril, Portugal virá de novo construir o seu mundo de paz, por maior que tenha de ser o seu sacrifício: mundo de uma paz que não surja como a Romana ou a Inglesa, do exterior para o interior, de um César para os seus súbditos, dos tribunais para os corpos; paz que se realize antes de tudo nas almas, lei que seja inteiramente não escrita e, no melhor de si, informulada; Reino de Deus que surja pela transformação interior do homem.
É como uma justificação e uma explicação deste seu acto fundamental de vida que Fernando Pessoa, pacientemente, vai durante quase duas dezenas de anos escrevendo Mensagem, sem dúvida a mais importante de suas obras plenamente emparelhando com Fernão Lopes, Os Lusíadas, D. João de Castro e a História do Futuro na compreensão do que verdadeiramente é Portugal; pela inteligência e entendimento fundamentais que enformam toda a obra e por ter posto mais claro do que Camões na Ilha dos Amores a concepção de um verdadeiro Império Português ou Quinto Império, veríamos até Mensagem como de importância superior à dos Lusíadas: no total, o não é, porque inutilmente procuramos na obra de Pessoa traços daquela espantosa e eloquente vitalidade de Camões, daquela ígnea personalidade que em si ardendo destruía todos os círculos limitadores que ele próprio ou os outros tentavam traçar à sua volta; a diferença que há entre Camões e Pessoa é a diferença que há entre um homem e a sua inteligência: mas esta, em Pessoa, mais clara e penetrantemente brilhava; foi mais compreensiva quanto ao Passado estático e ao Passado dinâmico, tão incisiva como a de Camões quanto ao Presente e muito mais aguda na previsão do Futuro.
A primeira ideia que nos dá Pessoa é a de que há um certo passado de Portugal que não é de natureza puramente histórica: é apenas uma revelação no passado do que é em Portugal uma perenidade; o apuramento dessa perenidade constitui o conteúdo da primeira parte do poema, aquilo a que Pessoa chamou justamente Brasão, mas que não é para ele brasão de túmulo, ou brasão daqueles palácios em ruínas que foram obsessão de Gomes Leal: o seu Brasão é a nobreza em cerne, é a essência do ser fidalgo de Portugal. Quando agir, será no Passado, a segunda parte do Poema, Mar Português, e, no Futuro, a terceira parte, O Encoberto. Brasão terá como lema Bellum sine bello: é a potência sem o acto, a energia sem a matéria, a História sem o tempo: Deus, vendo Portugal em Si eterno, escreveria Brasão. Mar Português é o acto que não esgota a potência, a matéria que não apaga a energia, o tempo que não liquida a História: por isso é apenas a Possessio Maris que o Poeta lhe deu por lema: é Portugal podendo apenas uma mínima parte do que pode; não se entregando todo e, portanto, apenas possuindo; em Mar Português, Portugal Tem, não É. Em O Encoberto, porém, toda a sua grandeza se revela: e o descerramento desta sua glória é quase a renovação, agora de homens para homens, do clamor antigo dos anjos, quando o Céu fez, por uma Terra que deles se desaviera, o sacrifício supremo de si próprio: Pax in excelsis; paz nas alturas em que o homem, indo além de si mesmo, se faz Santo; não a paz em que o homem, rendendo-se, organiza, explora e defende sua própria baixeza.
Em Brasão, Portugal é o rosto com que a Europa fita um Ocidente que, ao plenamente ser, justificará todo o passado de miséria que a humanidade tiver atravessado; a missão de Portugal não poderá ser outra senão a de resgatar o que a Europa fez e de a salvar a seus próprios olhos; por isso o seu campo, o dos Castelos, é o que serve de base ao das Quinas, o das Chagas de Cristo, este o campo próprio de Portugal: é expirando na cruz, esgotando-se no seu sangue e na sua piedade, que Portugal poderá salvar o mundo. No dos Castelos, porém, Portugal porá, como seu alicerce, o que de mais fundamental a Europa poderá ter dado ao mundo: com Ulisses, a ideia de que o mito é mais importante do que a realidade, de que o poder vir a ser é o substracto do que é, de que as coisas morrem à medida que são; com Viriato, a de que a verdadeira força propulsora da vida não é a inteligência, mas a reminiscência, e de que o ponto criador não é a definição, mas o pressentimento; com o Conde D. Henrique a de que a acção, se Deus é o agente, se faz para além das intenções e das possibilidades do herói, consistindo o heroísmo apenas em não se recusar o que não se compreende; com D. Tareja, juntamente com a da contemporaneidade do temporal e do eterno, a de que o dever perante a obra consiste em a ela se dedicar com a bruta e natural certeza com que a mãe amamenta a seu filho; com D. Afonso Henriques, a de que, para se vencerem infiéis, só vale uma indefinível arma, que, espinosianamente, tenha como um dos aspectos o da espada e como outro o da bênção, como um, o do corpo, como outro, o do espírito; com D. Dinis, a de que a intuição poética vale mais do que o plano; com o sétimo castelo, o que junta D. João e D. Filipa, o que se afirma é que a História, ao ser, toma dois aspectos: o do homem e o da obra, sendo as modificações de qualquer desses o reflexo das modificações do outro; e ainda, que o milagre da concepção humana consiste em que cada filho, sendo de seus pais, não tem ao mesmo tempo nada que ver com eles: a cada nova geração reafirma o Espírito Santo a liberdade de criar. A Europa em que Portugal assenta não é, felizmente, a Europa cartesiana.
Se a força de alicerce de Portugal vem de ter afirmado a sua existência de uma Europa que duas vezes se perdeu de si própria, primeiro na Idade Média grega, depois na Idade Média Ocidental, a sua força de salvação virá de, voluntariamente, ter incluído em seu brasão as chagas de Cristo, não pintando-as apenas, mas consubstanciando-as em gente sua: primeiro em D. Duarte, o mártir do dever; depois em D. Fernando, o mártir da grandeza de alma, superior sempre a seu destino; e em D. Pedro, o mártir da fidelidade a uma ideia claramente pensada e claramente sentida; e em D. João, o mártir de não querer senão o todo, ou o seu nada; e, finalmente, em D. Sebastião, o mártir do sonho de grandeza que está para além das circunstâncias históricas. Coroando os campos, a santidade activa de Nuno Álvares, a sua pureza guerreira, o halo que no céu gravam suas acções terrestres; e, numa afirmação final da energia que a tudo subestá, o Grifo com sua cabeça de águia adivinhando o mundo como um perfeito globo, ou melhor, obrigando o mundo a ser o globo que pensava; com uma de suas asas rasgando o firmamento num sulco de vontade, com a outra das asas o rasgando num sulco de poder.
Sobre a base teórica de que a vontade de Deus desperta o sonho do homem e de que o sonho do homem provoca o surgimento da obra, e afastando por aí, para explicar a História, tudo o que sejam causas espirituais ou materiais limitadas ao círculo humano, e pondo nitidamente, logo no primeiro poema, que a história que vai contar, a da Possessio Maris, não é a História de Portugal, mas apenas o seu interrompido prólogo, Pessoa dá o que foi o encantamento máximo dos navegadores, o de transformar o abstracto em concreto; o que foi basilar em sua actividade, a convicção de que só em Deus, como último porto de repouso; a vontade de um Rei de carácter sacramental que, faz, ao mais humilde dos homens, poder mais do que todos os medos do mundo; a glória de ter mostrado que o mar é sempre o mesmo e que a sua posse nada significa de vital; o sentimento de que o que vale na empresa de buscar é a busca e não o encontro; o mérito de ter sido o corpo da vontade de Deus, de ter sido o Tempo da Eternidade a revelar; o impulso que irá conduzir a história para além dos que o lançaram; a consciência de se ter realizado, no mundo físico, e sem nisso estar verdadeiramente empenhado, a mais alta façanha de que os homens se podem orgulhar; o ter ensinado que toda a descoberta se faz apenas quando se tem a coragem de passar além dos domínios da alegria e da dor; por fim, em Última Nau e Prece, a certeza de que, embora tenha vindo a noite e seja vil a alma, Deus ainda reserva para o seu povo Distância a conquistar.

É essa Distância como distante, é essa conquista como inconquistável o que, em O Encoberto, se anuncia pelos Símbolos, pelos Avisos, o último dos quais é o do próprio Fernando Pessoa, e se afirma triunfantemente através do negrume dos Tempos. Portugal, completando a sua obra, dará ao mundo o seu íntimo Império feito de anseios, de lonjuras, de Reinos ilocalizáveis em tempo ou espaço, o seu reino de alma humana continuamente sendo e continuamente ansiosa de mais ser, tendo-se inteiramente desprendido das ilusões de uma afirmação puramente pessoal e de uma pessoal felicidade; o mar bate nas costas do Império, mas, se o escutarmos, pára; decerto, porém, um dia, desistindo do nos opormos ao mundo, não mais o quereremos escutar; então, através de todo o nevoeiro, pelo próprio nevoeiro, terá surgido a Hora; o Encoberto, em milagre supremo, se descobrirá.

Agostinho da Silva, Um Fernando Pessoa